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 O Paramārthasāra (Paramarthasara) de Abhinavagupta: Estrofes 1 a 3 - pura - Shaivismo Não-dual da Caxemira

Tradução pura


 Introdução

Tem início o Paramārthasāra. Primeiramente, Yogarāja apresenta duas estrofes introdutórias. Depois disso, ele começa a comentar sobre as estrofes propriamente ditas.

Este é o primeiro conjunto de 3 estrofes das 105 que constituem a obra como um todo.

Obviamente, também inserirei as estrofes originais sobre as quais Yogarāja está comentando. Escreverei várias notas para que esse livro fique tão compreensível quanto possível.

Leia o Paramārthasāra e experimente Supremo Ānanda ou Divina Alegria, querido Śiva.

Este é um documento de "tradução pura", isto é, não haverá nenhum Sânscrito original, mas, às vezes, existirá uma quantidade mínima de Sânscrito transliterado na própria tradução do texto. Obviamente, não haverá nenhuma tradução palavra por palavra. De qualquer maneira, haverá Sânscrito transliterado nas notas explicativas. Se você for uma pessoa cega usando um leitor de tela e não quiser ler as notas, ou simplesmente quiser pular as notas, clique no respectivo "Pular as notas" para continuar lendo o texto.

Importante: Tudo o que está entre parênteses e em itálico dentro da tradução foi agregado por mim para completar o sentido de uma determinada frase ou oração. Por sua vez, tudo o que está dentro de um duplo hífen (-- ... --) constitui informação esclarecedora adicional também agregada por mim.


Obrigado a Paulo & Claudio que traduziram este documento do inglês/espanhol para o português brasileiro.


Ao início


 Duas estrofes introdutórias por Yogarāja -o comentador-

Glória ao Senhor Supremo —o Não Nascido que é habilidoso na arte de jogar para ocultar o próprio Ser—, o qual, embora seja uma massa compacta de Consciência, está coagulado na forma do mundo!1 ||1||

(O Paramārthasāra é) essa (escritura) que (constitui) um compêndio (que versa sobre) a essência da Mais Alta Realidade2  (e que) foi criada3  pelo Guru --Abhinavagupta-- através de uma argumentação lógica. (Eu,) Yogarāja, a pedido de pessoas sábias, componho --lit. faço, levo a cabo-- (agora) uma curta exposição sobre ele --sobre o Paramārthasāra-- ||2||

Pular as notas

1  O Senhor Supremo é o próprio leitor, aqui e agora. Não é alguém que vive longe, em uma fronteira distante, ou que reside em um mundo ou tempo diferentes, e por aí vai. O mundo ou universo do leitor não é nada mais que uma coagulação da natureza essencial do leitor (o Senhor ou Ser Supremo). Todos os objetos ao seu redor são as formas emanadas por ele mesmo, embora o leitor seja uma massa compacta de Consciência. É fundamental compreender essa verdade da maneira como a estabeleci, ou o leitor nunca entenderá do que se trata essa escritura. A escritura versa sobre o Senhor ou Ser Supremo, ou seja, sobre Você, leitor. Se o leitor acreditar que versa sobre "alguém mais", interpretará os ensinamentos dados pelos dois sábios (Abhinavagupta e Yogarāja) inadequadamente. Deixo isso muito claro desde o início, porque o Senhor Supremo (o leitor) é habilidoso na arte de jogar para ocultar o próprio Ser, isto é, Sua verdadeira identidade.Return

2  Paramārtha significa "a Mais Alta Realidade", mas também pode ser traduzido como: a Mais Alta Verdade ou a Meta Suprema. O termo Paramārtha é, "novamente", uma maneira de designar o Ser do leitor. Essa escritura, composta pelo Maior Guru do Trika, Abhinavagupta, é, então, um compêndio sobre a natureza essencial do leitor.Return

3  O termo "vyadhāyi" poderia ser confundido como Aoristo passivo (3a pessoa, singular) do verbo "vidhī" (estar incerto, hesitar), ou ainda como Aoristo passivo da raiz "dhe" (sugar, beber) com a adição do prefixo "vi". Nada disso está certo, porque a forma em questão certamente é "Aoristo passivo", mas não tem relação com "vidhī" (um verbo que existe) ou "vidhe" (um verbo que não existe). A confusão sobre um verbo hipotético "vidhe" vem da raiz "dhe", que forma o Aoristo passivo como "adhāyi", o qual poderia induzir o tradutor a considerar a possível existência um verbo na forma de "vidhe", adicionando "vi" à raiz "dhe". De qualquer forma, nunca consegui encontrar esse verbo. O certo é que "vyadhāyi" é o Aoristo passivo (3a pessoa, singular) do verbo "vidhā" (criar... e uma pilha de significados adicionais, como é comum em Sânscrito). Por isso, traduzi "vyadhāyi" como "(e que) foi criada". Em termos gerais, o Tempo Aoristo é geralmente usado para designar o "Tempo Passado indefinido". No entanto, também pode ser usado para indicar "Tempo Passado recente". Se a segunda possibilidade for o caso nesse contexto, quando Yogarāja escreveu o comentário sobre o Paramārthasāra de Abhinavagupta, a escritura sendo comentada poderia ter acabado de ser composta pelo Grande Guru.Return

Ao início


 Estrofe 1

Aqui, no livro (que ensina) a unidade com Śiva --o Ser Supremo-- --ou seja, no Paramārthasāra--, (Abhinavagupta), considerando que o efeito das escrituras é a aniquilação da difusão da multidão de obstáculos na forma de dúvida, preguiça, aflição mental, incerteza, etc. que surgem da noção ou ideia de que o Ser --si mesmo-- é predominantemente o estado de experimentador do corpo, etc. --em outras palavras, "eu sou o corpo, etc."--, (e) esmagando com o pé, (simbolicamente falando, o seu) estado de experimentador limitado, expressa, primeiramente, agora, (a sua) inclinação ou devoção ao Senhor Supremo. (Essa inclinação ou devoção) contém um resumo do significado de todas as escrituras (e) está repleta de uma absorção na deidade (denominada) "o próprio Ser ", que é uma massa compacta de Consciência (e) Bem-aventurança1 :


Tomo refúgio em Śambhu, unicamente em Você, que é Supremo, que reside além da impenetrável escuridão (conhecida como Māyā)2 , que é Único (e) sem nenhum começo, que permanece nos corações de muitas maneiras, que é a Moradia de tudo (e) que existe em todo o conjunto de coisas criadas, sejam animadas ou inanimadas!||1||


Para ingressar em uma absorção em Você, recorro unicamente a Você, Śambhu, que é o Protetor (ou) Refúgio, que é Existência (e) a natureza essencial de Anuttaraśreyaḥ --Paramaśiva--3 , cuja forma é a deidade (chamada) o próprio Ser, a essência que aparece brilhantemente como todos os Experimentadores4 . (Pela) palavra "eva" (na estrofe), (Abhinavagupta quis dizer) "tomo refúgio unicamente em Śambhu, cuja forma é a deidade (chamada) o próprio Ser, e não em algum deus separado que more dentro (da esfera de) Māyā5 " — Dessa forma, (Abhinavagupta) corta (qualquer) outro (tipo de) conexão (que alguns leitores poderiam inferir a partir da primeira estrofe) --isto é, o autor esclarece que está dirigindo-se "unicamente" ao Mais Alto Senhor, e não a alguma deidade menor--. Além disso, como (é Ele)? (Abhinavagupta responde dizendo que ele toma refúgio Naquele que é) Para ou Supremo, (isto é, que é) Pleno, da natureza de Anuttara --Paramaśiva-- (e) repleto dos Poderes de Consciência, Bem-aventurança, Vontade, Conhecimento (e) Ação. Da mesma forma, (toma refúgio Naquele que é) "Parasthaṁ gahanāt", (isto é,) Naquele que reside apenas em (Sua) perfeita natureza essencial, (que consiste no) curso puro que começa em Śiva-tattva e termina em Sadvidyā-tattva, a qual está além do tattva ou categoria conhecido como Māyā, a impenetrável escuridão6 . Contudo, não existe, no Seu caso, o ato de sair da (Sua própria e perfeita) natureza essencial, que está além daquilo que aparece brilhantemente, inclusive como a diversidade de vários estados7 . Isso (também) foi dito nas Spandakārikā-s:

"Inclusive na variedade (de estados, tais como) vigília, etc., a qual --isto é, "a variedade de estados"-- não é separada desse (Spanda, o princípio do Spanda) continua fluindo. (O Spanda) não sai (jamais) da Sua própria natureza essencial como o Percebedor ou Experimentador --upalabdhṛ--."

Spandakārikā-s I.3

(Ele toma refúgio Naquele que é) Anādi --sem nenhum começo-- (ou) Antigo, porque (Ele é) o Ādisiddha --lit. provado em primeiro lugar-- (dotado) do estado de ser o Experimentador, (ou seja,) Aquele que experimenta todas as pratīti-s ou percepções8 . (Abhinavagupta toma refúgio Naquele que é) "Eka" (ou) Solitário pois, (no Seu caso), não há maneira de provar (existência) de dualidade, já que ele brilha em unidade com a Consciência9 . Assim, (ele toma refúgio Naquele que) permanece, etc. --e agora, o comentarista seguirá falando sobre onde Ele permanece--.

Dessa forma, (toma refúgio Naquele que), embora seja assim --embora Ele tenha a natureza previamente citada--, por meio da sua Liberdade Absoluta, entrou nas guhā-s (ou) covas dos corações cujas formas são Rudra-s --seres libertos-- (e) kṣetrajña-s --seres limitados--10 . (Como?): bahudhā (ou) de diversas maneiras. (Em suma,) embora seja Consciência onisciente e onipotente, Ele mesmo, após aparecer como tudo o que é animado e inanimado, permanece, como um ator, na forma de múltiplos experimentadores — Esse é o significado. Por essa razão, (Abhinavagupta toma refúgio Naquele que) é "sarvālaya", (ou seja, Naquele que é) o ālaya (ou) o lugar de repouso de sarva --de tudo--, do mundo, que é feito de cognoscíveis --objetos-- (e) conhecedores --experimentadores-- (tais como) Rudra-s --seres libertos--, kṣetrajña-s --seres limitados--, etc. Tudo isso que existe --Sat-- permanece, certamente, no Experimentador Perfeito ou Pleno11 . (No entanto, tudo isto que existe) --o universo ou mundo--, o qual aparece como se tivesse emergido devido à dualidade em relação aos pares de sujeitos (e) objetos, é representado como se consistisse de múltiplas formas. De outro modo, a própria existência de algo distinto da Sua Luz não existiria12 . Como (é) esse universo? — (Para encontrar a resposta, deve haver) reconhecimento ou consciência do pronome --do pronome "idam" (isto), que indica que o universo é diferente de "aham" (eu)--13 . (Caso se levante a seguinte objeção:) "A transcendente natureza do Afortunado --o Senhor Supremo-- não é de tal classe ", (Abhinavagupta) disse "(tomo refúgio Naquele que) existe em todo o conjunto de coisas criadas, sejam animadas ou inanimadas ". (Toma refúgio Naquele que) permanece com a forma disso, (isto é, de) todo este universo, cuja natureza é coisas animadas e inanimadas. Segundo a regra:

"Como Você mesmo é certamente o Fazedor de tudo, oh Onipresente!, portanto, tudo isto (é) Você unicamente."

Já que não há prova suficiente sobre a existência de um efeito --algo que se manifesta-- no caso de alguma outra coisa que esteja separada (do Senhor Supremo e) que não se torne visível devido à (Sua) Luz --em suma, não se pode provar de forma alguma que haja algo mais que esteja separado Dele e não apareça por causa da Sua Luz--14 .

"O próprio experimentador, sempre (e) em todos os lugares, permanece na forma do experimentado."

Spandakārikā-s II.4

O Próprio Afortunado --o Senhor Supremo-- brilha desse jeito (e) daquele jeito! Prapadye (ou) "eu recorro" a Você, que é assim, a Anuttara --lit. mais alto que o qual não há nada, "o Absoluto"--, cuja natureza é a deidade (chamada) o próprio Ser de tudo (e) que assume multiplicidade embora Você seja a Essência do Deleite da mais alta consciência do Eu. Além disso, (recorro) ao Afortunado Śambhu, cuja natureza essencial é a Luz do supremo não dualismo (e) da perpetuamente indivisível Liberdade do Ser. (Em outras palavras,) absorvo-me unicamente em Você, meu próprio Ser, que é assim, que é o Deleite da mais alta consciência do Eu. (Faço isso) dotando de boas qualidades o (meu) ego artificial (surgido a partir da identificação com) o corpo, etc.. Esse é o significado15 . Através dessa declaração (dita) por aquele que tomou o (Senhor Supremo), por (Abhinavagupta) —o Guru que ensina o Estado que deve ser escolhido acima de tudo (e) que está repleto de uma absorção na própria natureza essencial—, fez-se uma alusão ao significado de todo o livro. (Os meios) a serem selecionados ou descartados serão mencionados posteriormente16 ||1||

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1  Esclarecendo agora essa complexa introdução de Yogarāja:

Ele se refere à primeira estrofe escrita por Abhinavagupta em seu Paramārthasāra, obviamente. Ele diz que Abhinavagupta expressa a sua inclinação ou devoção em direção ao Senhor Supremo bem no início da escritura, isto é, na primeira estrofe. Essa devoção expressada ou mencionada por Abhinavagupta constitui um compêndio ou resumo dos significados encontrados em todas as escrituras. Por quê? Porque Abhinavagupta toma refúgio no Senhor Supremo. Tomar refúgio no Senhor Supremo é a quintessência de todas as escrituras. Esse ato também está repleto de uma absorção no próprio Ser, que é uma massa compacta de Consciência e Bem-aventurança. Por quê? Porque Abhinavagupta está atingindo iluminação espiritual "à vontade" por meio de uma absorção em seu próprio Ser. Abhinavagupta não escreve o seu Paramārthasāra em um estado comum de consciência, mas sim em um estado de plena iluminação conseguida meramente ao desejá-la enquanto expressa devoção ao Grande Senhor. Isso é provado pela frase: "esmagando com o pé, (simbolicamente falando), (o seu) estado de experimentador limitado". O grande sábio não quer permanecer "descendido" em um estado inferior de consciência, mas, pelo contrário, quer elevar-se até o Mais Alto Estado, ou seja, até o estado de Ser Supremo, e escrever a escritura a partir desse Nível.

O sábio começa a escrever enquanto considera (reflete sobre) que o efeito das escrituras é a total destruição da difusão de múltiplos obstáculos. Esses obstáculos são dúvida, preguiça, inquietude mental, incerteza, etc. Tudo isso é escravidão baseada na noção ou ideia de que uma pessoa é corpo, mente, ego, etc. Quando se lêem escrituras, o efeito é que toda essa escravidão é removida completamente, o que conduz à Libertação final (também conhecida como iluminação espiritual). Libertação de quê? Da escravidão, ou seja, dúvidas, preguiça, aflição mental constante, incerteza e um longo et cetera. Abhinavagupta sabe essa verdade e, por isso, está começando a sua "escritura" para que ela seja um meio efetivo para a aniquilação dessa miríade de obstáculos que se colocam no nosso caminho. Bem, suponho que o significado oculto nessa introdução à primeira estrofe esteja claro agora. Sim, agora, o leitor tem que ler a estrofe propriamente dita para finalmente compreender a minha explicação também, hehe.Return

2  O termo "Śambhu" é um epíteto de "Śiva" (o Ser Supremo, o Ser do leitor). Parece haver uma contradição aqui, pois Abhinavagupta está chamando Māyā de "impenetrável escuridão". Māyā em Trika não é nem um pouco como a da filosofia Advaitavedānta. Em Trika, a Māyā não é "indescritível" (nem real, nem irreal), mas sim uma manifestação "real" da Liberdade Absoluta (Svātantrya) do Senhor Supremo. Explico tudo isso extensivamente no meu artigo sobre "Confusão entre Vedānta e Trika" no Blog. Portanto, Māyā atua meramente como um véu que o Senhor Supremo impõe em Si Mesmo (não há ninguém impondo algo ao Senhor Supremo) para gerar dualidade (diferenças). O sistema Trika explica os processos de manifestação universal e libertação final através dos 36 tattva-s (categorias) (para obter informação detalhada sobre tattva-s, o leitor deveria consultar Trika 1, Trika 2, Trika 3, Trika 4, Trika 5 e Trika 6... não repetirei isso "dessa maneira detalhada" pela razão óbvia de não ficar redundante). Māyā é, então, o sexto tattva ou categoria que produz dualidade (diferenças). Quando a pessoa está em escravidão (isto é, não espiritualmente libertada ou iluminada), Māyā lhe parecerá como gahana ou uma impenetrável escuridão, como um véu cobrindo a sua natureza essencial, que é Luz Pura e Bem-aventurança. A alma dessa pessoa limitada que ainda está em escravidão é designada pelos nomes "puruṣa" (indivíduo limitado) ou "aṇu" (átomo), o qual constitui o tattva ou categoria 12 no previamente mencionado esquema de 36 tattva-s. Esse décimo segundo tattva é o mesmo Senhor Supremo (Śiva, o Ser do leitor), mas após ter sido "processado" por Māyā e sua progênie de cinco Kañcuka-s ou Envoltórios (tattva-s 7 a 11). No entanto, quando essa mesma pessoa está plenamente libertada, Māyā lhe parecerá como a Liberdade Absoluta do seu Ser, que está repleta de Glória divina, e não como gahana ou uma impenetrável escuridão. De fato, todos os tattva-s (inclusive os que são inferiores, ou seja, do 6 ao 36) parecerão como uma divina exibição da Glória divina, e não como obstruções ou categorias inferiores. É fundamental compreender essa diferença sobre o modo em que uma pessoa limitada e uma pessoa libertada percebem a mesma série de 36 tattva-s ou categorias. A primeira vê Māyā (sexto tattva ou categoria) e tudo o que dela emana (tattva-s 7 a 36) como uma fonte de limitação, enquanto a segunda vê tudo isso como a divina Glória do seu Ser (vê todos esses tattva-s como uma exibição da sua própria Glória divina).

A aparente contradição aqui é: Como poderia Abhinavagupta estar vendo Māyā como um indivíduo limitado em escravidão se ele é o maior Mestre de Trika de todos os tempos? Em outras palavras, se ele disse que Māyā é uma impenetrável escuridão, então estava no estado de indivíduo limitado, pois essa é a maneira como um indivíduo limitado considera Māyā. Consegue compreender? Além disso, Yogarāja estabeleceu anteriormente, na sua introdução à primeira estrofe, que Abhinavagupta havia esmagado com o pé (simbolicamente falando) o estado de ser um experimentador ou indivíduo limitado, certo? Então, porque ele ainda o mantém? A resposta é: "Por causa do desejo de mostrar a sua inclinação ou devoção ao Senhor Supremo". A devoção ao Senhor somente existe na presença de dualidade entre devoto e Senhor. Não existe no Núcleo da Verdade, quando se dá conta da total unidade com o Senhor. Consequentemente, embora Abhinavagupta não queira descer a estados inferiores enquanto escreve o Paramārthasāra, ele mantém uma "leve" dualidade com o Senhor Supremo por um tempo muito curto, enquanto escreve essa primeira estrofe, porque NÃO é possível tomar refúgio no Senhor Supremo se você for o próprio Senhor. Agora, a aparente contradição desapareceu da mente do leitor.Return

3  A palavra "Anuttaraśreyaḥ" significa "o muito excelente Anuttara". O termo Anuttara, traduzido "literalmente", significaria "An-uttara", isto é, "não mais alto, não superior", o qual é quase sem significado. Portanto, a maneira correta de traduzi-lo é assim: "mais alto que o qual não há nada", em suma, "não há nada mais alto que Isso". Agora, ganhou significado. Além disso, o termo Anuttara é uma maneira de designar a vogal "a" em Trika, pois essa vogal encarna a Mais Alta Realidade. Bem, o tema sobre letras sânscritas designando distintas categorias e níveis já foi delineado em Tattva-s & Sânscrito; e foi investigado detalhadamente em Primeiros Passos (4), Primeiros Passos (5) e Primeiros Passos - 1, se você quiser aprofundar-se nisso (depois de ler esses quatro documentos, você não poderá dizer que nunca tentei explicar-lhe as relações entre letras sânscritas e tattva-s, hehe). Portanto, Anuttaraśreyaḥ significa "Aquele Que É Muito Excelente E Está Acima De Tudo" (não há nada mais alto que Ele). Isso é, obviamente, "Paramaśiva".

A maioria das pessoas diz, "Ah sim, Paramaśiva", mas não consegue entender a diferença entre "Paramaśiva", "Śiva" e "Śakti". Certamente existem pessoas que fazem um "mistério" sobre esses três aspectos da Realidade que são "grátis como o ar fresco", e que cobram pela sua "revelação"... e certamente haverá pessoas pagando por isso! Estranho esse Jogo! Aí vou eu: Se você pegar a Tabela de Tattva-s, que descreve todo o processo de manifestação universal, perceberá imediatamente que Paramaśiva não está ali como "um tattva", mas sim como "o Supremo Śiva ou Fonte de Tudo". Tecnicamente falando, Paramaśiva é a soma de Śiva e Śakti, mas há muito mais em tudo isso. Escute: o universo começa a aparecer no tattva 3 (não nos tattva-s 1 e 2). Como resultado, os estados de Śiva e Śakti estão "completamente desprovidos dos tattva-s 3 a 36, ou seja, do universo". Então, o que é o universo? É uma expansão de Śakti denominada "śakticakra" (grupo de poderes). O universo não é "exatamente" Śakti (a consciência do Eu), porque Śakti não se distancia nem sequer um milímetro do Seu Senhor Śiva (Eu puro). Śiva e Śakti constituem, então, "Eu Sou" (Eu + consciência do Eu). Em "Eu Sou", não há universo. Tecnicamente falando novamente, o universo (do tattva 3 ao tattva 36) é a manifestação do śakticakra, e não de Śakti diretamente, pois Ela é imutável e está além do universo, da mesma forma que o próprio Śiva. O assunto denominado "śakticakra" é extensivamente explicado pelo sábio Kṣemarāja em seu Spandanirṇaya I.1. No entanto, Paramaśiva não está SOMENTE nos tattva-s 1 e 2 como estão Śiva e Śakti, mas sim Ele está em todos os tattva-s (do 1 ao 36), bem como além de todos eles, e, por que não, "em algum outro lugar também". Paramaśiva é tanto imanente quanto transcendente, e também algo mais. É impossível descrevê-Lo em palavras.

Agora, como se coloca isso em um exemplo prático compreensível para alguém que pratica meditação todo dia seguindo a sagrada tradição do Trika? Veja isso em ação: Paramaśiva é designado por Abhinavagupta, nas suas obras, como "Hṛdaya" (Coração). Por quê? Porque ele bate constantemente como um Coração. Ora Śakti manifesta o śakticakra ou grupo de poderes, o qual manifesta o universo (tattva-s 3 a 36), ora Śakti retira esse śakticakra, e todos os tattva-s, do 3o tattva até o 36o, também são retirados. Quando o śakticakra volta à origem, ou seja, a Śakti, tanto Śiva quando Śakti permanecem sozinhos na forma de "Eu Sou". É por isso que se indica que Eles (Śiva e Śakti) moram nos tattva-s 1 e 2, e não no resto dos tattva-s. E, quando o śakticakra é manifestado por Śakti, esses poderes se apressam a levar a cabo essa monumental obra denominada "o universo". Um exemplo desses poderes são as conhecidas Karaṇeśvarī-s ou deusas dos sentidos mencionadas em Spandanirṇaya I.6-7. Os inertes órgãos dos sentidos (p. ex., os olhos) ganham vida e consciência devido à operação das divinas Karaṇeśvarī-s. É óbvio o momento no qual o universo é manifestado pelo śakticakra, ou seja, é o universo inteiro que você pode ver, ouvir, pensar sobre, etc. "agora mesmo". Mas não é tão óbvio o momento no qual o śakticakra é retirado, o universo desaparece como resultado e Śiva/Śakti permanecem sozinhos como "Eu Sou", certo? Essa contração do divino Coração (Hṛdaya) pode ser percebida nos "intervalos" entre dois estados, dois movimentos, dois pensamentos, etc. "Nos intervalos", essa é a chave para dar-se conta completamente de "Eu Sou", também denominado Śiva/Śakti (tattva-s 1 e 2).

Por exemplo, voltando às Karaṇeśvarī-s ou deusas dos sentidos, quando você vê "esse" objeto com atenção, o universo (o próprio objeto junto com sentidos, mente, limitações, etc. etc., ou seja, todos os tattva-s desde o número 3 até o número 36) está manifestado ali. Depois, você tenta olhar com atenção "outro" objeto, e existe um "intervalo" conforme você move a atenção do primeiro objeto em direção ao segundo. Se você concentrar-se nesse intervalo, está meditando em "Eu Sou", em Śiva/Śakti (tattva-s 1 e 2), onde as Karaṇeśvarī-s não estão operando. De fato, o grupo inteiro de poderes (śakticakra) não está operando nesses intervalos quando a sua atenção vai de um objeto até outro objeto. Como isso está acontecendo constantemente enquanto os seus sentidos estão em operação, o Senhor Supremo (Paramaśiva) está constantemente batendo, vibrando como o universo (todos os tattva-s, do 3 ao 36, desde o experimentador do tattva 3 até o próprio objeto que você está vendo, o qual descansa predominantemente nos últimos cinco tattva-s, 32-36) agora, e como o puro "Eu Sou" no próximo momento. A diferença entre pessoas comuns e yogī-s (aspirantes espirituais) é que as primeiras não prestam atenção nos intervalos, mas sim nos "objetos em si", enquanto os segundos prestam atenção nos "intervalos", e não nos objetos em si. Essa é a diferença. O que mencionei com relação a objetos externos que se vêem com os olhos pode ser contemplado no caso de sons que são ouvidos externamente, etc. (gostos, odores e toques), ou ainda pensamentos contemplados internamente, ou inclusive estados de consciência tais como vigília, sono e sono profundo. Toda vez que há um "intervalo" entre dois movimentos, nesse momento, todo o śakticakra é retirado por Śakti e "Eu Sou" permanece sozinho em toda a Sua Pureza.

Os problemas que você tem não existem nos intervalos, porque não há nenhum universo naquele momento. Eles existem somente quando o universo é manifestado pelo grupo de poderes (śakticakra) em operação. Dessa forma, a concentração nos intervalos é a "saída a todos os problemas de uma vez só". Os prazeres dos sentidos, nessa etapa, não devem ser estimulados excessivamente... não porque sejam "absolutamente" ruins, mas sim porque são relativamente ruins "no caso de alguém tentando concentrar-se nos intervalos". Os prazeres dos sentidos têm a ver com os próprios objetos, sejam eles pensamentos, movimentos, objetos externos e por aí vai, mas o aspirante quer concentrar a atenção nos intervalos nesse momento. Uma vez que o aspirante tenha dominado a concentração nos intervalos, a Bem-aventurança (a natureza de Śakti) emergirá por si só, espontaneamente. Nesse momento, os olhos do aspirante se fecharão à força, e ele será absorvido pelo prakarṣa de Śiva, pela intensidade de Śiva. Isso é o transe com os olhos fechados (Nimīlanasamādhi), esse é o Estado de Śiva, também conhecido como Turya (o Quarto Estado) porque corre através dos outros três estados (vigília, sono e sono profundo) como um fio correndo através das contas de um rosário. Aspirantes que chegaram a essa etapa experimentaram Ātmavyāpti (uma penetração no seu Ser interior, ou seja, em Śiva). Mas, como Śiva vive SOMENTE no tattva 1 junto com Śakti, que mora no tattva 2, a experiência de Bem-aventurança SOMENTE emerge quando o universo NÃO está manifestado. É por isso que ele teve que fechar os olhos à força durante o transe, porque Śiva/Śakti vive além do universo.

Agora, há uma parada aqui, porque Ātmavyāpti poderia parecer como o Mais Alto Estado que uma pessoa pode alcançar, mas isso NÃO é verdade. Por quê? Porque, para experimentar o seu Ser interior, tem que fechar a porta, simbolicamente falando, e deixar o universo para trás. Pelo tempo em que conseguir fazer isso, ele é Bem-aventurado, isto é, desfruta da Bem-aventurança de Turya (do estado de Śiva). De qualquer modo, quando os olhos (não somente os olhos, obviamente, mas todo o conjunto de sentidos) estão abertos, não consegue recuperar a sua Bem-aventurança anterior devido à presença do śakticakra ou grupo de poderes e a sua criação: o universo. "Como manter a minha Bem-aventurança inclusive com o universo ON (ligado)?", o aspirante se perguntará. É aqui que começa a ser importante a questão de Paramaśiva. A primeira atitude sobre o universo poderia ser advaitavedântica (pertinente à filosofia Advaitavedānta previamente mencionada), na forma de "esse universo é irreal!". Uma negação do universo assegura uma repentina Bem-aventurança, já que os olhos se fecham novamente, mas, "novamente", isso também é insuficiente, pois o aspirante será forçado a sair desse estado à medida que os sentidos são despertados pelo śakticakra, que aparece como as deusas dos sentidos. Obviamente, o sistema Trika (a filosofia que estou ensinando) não aprova a negação do universo como: "É irreal" ou, simplificando as coisas para você, "É uma pedra no meu sapato. Estava experimentando uma Bem-aventurança tão intensa e agora esse universo está perturbando o meu transe novamente!". Essa é a limitação com o Estado de Śiva (formalmente falando), só opera quando o universo (tattva-s 3 a 36) NÃO está em operação. É por isso, como expliquei acima, que se postula que Śiva reside no tattva 1 e NÃO nos tattva-s 3 a 36.

Para "esquivar" o problema relacionado ao universo na forma de uma cessação da Bem-aventurança, o aspirante tem que ingressar no Estado de Paramaśiva. Para fazer isso, tem que considerar o universo (as contas no rosário mencionado anteriormente) como divino, como o próprio Paramaśiva, e não como um obstáculo. Essa é a aquisição da Paramaśivadṛṣṭi ou o ponto de vista de Paramaśiva. Paramaśiva (o Supremo Śiva) não é como Śiva (tattva 1), tecnicamente falando, porque Ele mora em todos os tattva-s, do primeiro até o último, e Ele também está além de todos os tattva-s. Então, o universo nunca é uma obstrução colocando-se no Seu caminho. Quando o aspirante tem esse ponto de vista, os seus olhos começarão a fechar e abrir naturalmente (nenhum esforço da sua parte). Isso é a Kramamudrā ou o Selo relativo a sucessão ou sequência, pois os seus olhos abrirão e fecharão alternadamente. Quando os olhos estão abertos, verá os objetos repletos do seu Bhāsa ou Refulgência (isso é o transe com os olhos abertos ou Unmīlanasamādhi), e, quando os olhos estão fechados, experimentará o seu próprio Ser (isso é o transe com os olhos fechados ou Nimīlanasamādhi). A soma de Unmīlanasamādhi e Nimīlanasamādhi é denominada Pratimīlanasamādhi (transe com os olhos abertos/fechados), que se menciona no último aforismo dos Śivasūtra-s como sendo a Meta Suprema. Sim, Pratimīlanasamādhi é o Estado de Paramaśiva, onde o yogī experimenta intensa Bem-aventurança com o universo on e off (ligado e desligado), ou seja, "sempre". Isso é libertação final ou iluminação espiritual segundo o Trika. E essa libertação final se denomina Śivavyāpti (uma penetração em Śivá, ou, melhor dito, em Paramaśiva, estritamente falando). Os prazeres dos sentidos não são mais nem sequer "relativamente ruins" nesse ponto para o ex-aspirante, pois todos eles são considerados por essa pessoa iluminada como brilhos do seu divino Ser (Paramaśiva). Os prazeres dos sentidos eram "relativamente ruins", no sentido de que eram obstáculos, somente no caso de um aspirante que quer concentrar-se nos intervalos, como eu expliquei acima... pelo menos na etapa inicial de tal concentração. No entanto, a pessoa libertada pode experimentar prazeres dos sentidos sem nunca perder o seu Estado de Paramaśiva, porque se deu conta da sua unidade com tudo e todos. Alguém que alcançou esse Estado Supremo é, tecnicamente falando, um jīvanmukta ou libertado em vida.

Sim, Paramaśiva é Śiva, e Śiva é um com Sua Śakti, não entre em pãnico, por favor!... mas há uma sutil diferença entre eles. Se alguém fizer o que ensinei, ele ou ela ficará logo livre da escravidão. A escravidão está, a princípio, somente no universo, não nos intervalos, mas, em última análise, quando o universo for visto como realmente é, como Paramaśiva, a escravidão não é mais escravidão, e sim uma Fonte de Bem-aventurança. Essa é a maneira correta de fazer as coisas. Embora existam outros métodos também, que se aproximam ao Estado de Paramaśiva a partir de outros ângulos, o que acabei de mostrar-lhe é totalmente confiável se for seguido literalmente. Como você pode ver, primeiro havia uma árvore (o termo Anuttaraśreyaḥ designando Paramaśiva no comentário de Yogarāja), mas, agora, há uma floresta completa cheia de ensinamentos que mostram a você a saída da sua escravidão auto-imposta. Dessa maneira, foi dado a você o conhecimento completo para fazê-lo, mas você deve fazê-lo, OK? Ninguém pode fazê-lo no seu lugar. Então, Paramaśiva exibiu Sua Compaixão.Return

4  Existem sete experimentadores, ou melhor, sete etapas para um Experimentador:

(1) Śiva (seu âmbito é os tattva-s Śiva e Śakti, as duas primeiras categorias) - Ele é o Experimentador Supremo e a própria natureza essencial. Nenhum universo está presente aqui.
(2) Mantramaheśvara (seu âmbito é o Sadāśiva-tattva, a terceira categoria) - Embora o universo tenha começado a existir, ainda é uma experiência indistinta. Então, esse experimentador ainda está plenamente absorvido em seu Ser ou Aham ("Eu").
(3) Mantreśvara (seu âmbito é o Īśvara-tattva, a quarta categoria) - O universo aparece como uma realidade nítida, e, como resultado, esse experimentador fica completamente absorvido nessa maravilha, mas ainda mantém a consciência de Ser intacta.
(4) Mantra (seu âmbito é o tattva Sadvidyā ou Śuddhavidyā, a quinta categoria) - Existe um equilíbrio entre Aham ("Eu") e Idam ("Isto", o universo). Esse experimentador é igualmente consciente de ambos os aspectos ao mesmo tempo.

Os quatro experimentadores anteriores são divinos ou superiores. Estão completamente desprovidos de mala ou impureza. De fato, o primeiro experimentador não é nem mesmo realmente um tipo de experimentador, mas sim o Próprio Senhor! Ele não tem nenhum universo para experimentar porque permanece completamente estabelecido em Si Mesmo como Aham ou "Eu", ou seja, não tem nenhum "Idam" ("Isto") ou universo como campo de experiência.

Agora, os próximos experimentadores estão afundados na miséria, ou seja, em bheda ou dualidade:

(5) Vijñānākala (seu âmbito fica entre os tattva-s Sadvidyā e Māyā, isto é, entre as categorias quinta e sexta). Ele se dá conta de que Śiva é o seu verdadeiro "Eu", mas carece de poder (daí que seja "akala") devido ao Āṇavamala;
(6) Pralayākala (seu âmbito é Māyā e seus cinco Kañcuka-s, da categoria sexta até a décima primeira). Esse experimentador também está desprovido de poder (akala) e se identifica plenamente com a energia vital. Consequentemente, o universo aparece para ele de maneira dissolvida. Em outras palavras, experimenta-o como um vazio. Mantém as três impurezas, ou seja, Āṇavamala, Māyīyamala e Kārmamala, mas as duas últimas não estão em operação, pois o universo atravessou um "pralaya" ou "dissolução". Outros dizem que ele só mantém Āṇavamala e Kārmamala, mas a questão é irrelevante de qualquer forma, pois tanto Māyīyamala quanto Kārmamala não podem estar em operação aqui devido à ausência de objetos internos ou externos (pensamentos, coisas externas, etc.).
(7) Sakala (seu âmbito abrange desde Puruṣa --a décima segunda categoria-- até a última). Por um lado, esse experimentador não está desprovido de poder (daí que seja "sakala" ou "com poder"), mas é limitado em todos os aspectos, especialmente com referência à sua concepção de "Eu". Ele está convencido de que o corpo físico (composto pelos cinco elementos brutos) e o corpo sutil (composto por intelecto, ego, mente e elementos sutis) são o seu verdadeiro "Eu". Essa noção errônea o força a utilizar os seus já limitados poderes de vontade, conhecimento e ação de várias formas inúteis. Em vez de usá-los para alcançar uma consciência do Ser, ele corre como um louco atrás de prazeres e foge a qualquer custo da dor, sempre em busca da Alegria Suprema, mas ignorando tanto o seu estado de buscador da Alegria Suprema quanto o verdadeiro lugar onde tal Alegria reside (no seu verdadeiro Ser).

E SIM, deveria haver um oitavo Experimentador (pramātā) chamado Paramaśiva, que é todos os experimentadores e ao mesmo tempo está além de todos, ou seja, o âmbito desse Experimentador não está nem sequer confinado aos tattva-s 1 e 2, como é o caso do experimentador Śiva (Śivapramātā); em vez disso, abrange "Tudo". Portanto, Paramaśiva é sempre o Mais Alto Experimentador. É tão Alto que não se inclui na lista normal de sete experimentadores.

Cada um dos experimentadores tem um prameya ou campo de experiência adequado para a sua natureza. Por exemplo, um Sakala tem um universo formado por diferentes realidades, desde o próprio deus Brahmā até o último verme, enquanto um Pralayākala tem o mero vazio como campo de experiência ou prameya. Muito bem, se você quiser saber mais sobre esses temas: Leia todas as páginas desde Trika 1 até Trika 6. Adicionalmente, você também pode ler Ṣaṭtriṁśattattvasandoha.Return

5  Na esfera de Māyā (isto é, do Māyātattva ou categoria 6), há dois tipos de experimentadores: Pralayākala e Sakala. Como é óbvio, enquanto Yogarāja comenta isso, não está referindo-se aos Pralayākala-s, porque todos eles são akala-s ou "carentes de poder". Então, está referindo-se aos Sakala-s. Existe uma concepção errônea comum de que os Sakala-s são "apenas" seres humanos, mas não é exatamente assim. Existem Sakala-s que são muito mais poderosos que os seres humanos, mas ainda estão sob o domínio das três impurezas ou mála-s: por exemplo, o deus Indra. Então, Yogarāja está deixando explícito que Abhinavagupta não está tomando refúgio em "nenhum" desses deuses "separados" que moram na esfera do Māyātattva, mas sim está tomando refúgio unicamente em Śambhu, que não é um deus "separado" como, por exemplo, Indra, mas sim "o seu próprio Ser". Então, Abhinavagupta está tomando refúgio no seu próprio Ser. Agora, o significado é claro.Return

6  O Senhor Supremo (chamado Śambhu --lit. Aquele que concede felicidade-- por Abhinavagupta na estrofe) tem a Sua perfeita natureza essencial estacionada no curso puro (śuddhādhvā), nos tattva-s ou categorias 1 a 5 (Śiva, Śakti, Sadāśiva, Īśvara e Sadvidyā), que estão além da impenetrável escuridão denominada Māyā (tattva 6). Todos os tattva-s ou categorias do 6 ao 36 formam o curso impuro (aśuddhādhvā). O curso puro é divino (não é material), enquanto o curso impuro não é divino (é material). Como o Senhor Supremo é plenamente divino, não pode ser encontrado através de meios materiais de forma alguma. Isso é 101 em espiritualidade, ou seja, elementar. De qualquer forma, Ele é tão inconcebível que pode ser encontrado, "utilizando os meios corretos", inclusive no último tattva (o 36o), como expliquei em uma nota anterior. Esse é Śambhu, o Senhor Supremo.Return

7  Embora Paramaśiva esteja estacionado nos primeiros cinco tattva-s, como foi indicado anteriormente, continua sendo o Mesmo. Ele atravessa a diversidade de quatro estados: EU SOU (Śivatattva e Śaktitattva), EU SOU ISTO --Eu sou o universo-- (Sadāśivatattva), ISTO SOU EU (Īśvaratattva) e EU SOU EU E ISTO É ISTO (Sadvidyā), mas nenhum desses estados altera a Sua perfeita natureza essencial, já que Ele é EU e ISTO... e também está além de tudo isso. Em suma, Abhinavagupta está se dirigindo a Paramaśiva diretamente. O sábio não está nem se dirigindo ao Seu divino aspecto como "EU SOU" (Śivatattva e Śaktitattva), porque esses dois vivem somente nos tattva-s 1 e 2, tecnicamente falando. Dirige-se diretamente a Paramaśiva, ao Mais Alto Senhor como Ele é essencialmente, isto é, como o que mora em cada um dos 36 tattva-s e também transcende a todos eles. Para mais informação, leia, como sempre, a Tabela de Tattva-s.Return

8  O Senhor Supremo (Paramaśiva) é sem começo, antigo... e eu adicionaria "sempre novo" ao mesmo tempo. Quando se dá conta Dele, nota-se que nunca mudou. Nada aconteceu com Ele, embora o universo tenha rugido por intermináveis éons. Esse maravilhoso dar-se conta vem a somente uma pessoa sortuda entre milhões de pessoas. Por quê? Porque Ele é assim. Um dia, sente vontade de dar libertação final a alguém e, em seguida, essa pessoa sortuda se liberta imediatamente de todos os grilhões. Parece que "muitas coisas" estão acontecendo a uma pessoa, certo? Cada dia, experimenta-se isso ou aquilo, a todo momento. Parece como se a vida estivesse passando carregada de inúmeras experiências que se têm a cada momento. Bem, isso é uma ilusão. Sim, é real, existe, mas nada está tocando o seu "Eu". Em suma, você não está mudando nem um pouco, embora tantas coisas pareçam lhe ocorrer. Na verdade, essas coisas estão acontecendo aos seus corpos (físico, sutil e causal), e NÃO a "Você", leitor. Quando a consciência do Ser é obtida, você finalmente nota que nada lhe aconteceu, jamais. Esse é o objetivo mais elevado. Essa percepção o libera da escravidão (p. ex.: sou magro, sou um homem assim, estou cansado, preciso disso, tenho isto, dependo daquilo, etc.) imediatamente.

Yogarāja chama-o de Ādisiddha porque Ele está provado em primeiro lugar, "sempre", antes que qualquer negação tente desmenti-lo. Nesse sentido, Paramaśiva é uma Realidade eternamente estabelecida. Por mais inteligente que uma pessoa possa ser, nunca pode desmentir a existência do Senhor Supremo. Por quê? Escute com atenção: Não precisa mostrar-lhes milagres da natureza, o milagre do sol brilhando, o milagre da vida, etc. NÃO. Para refutar todos os argumentos, só precisa perguntar-lhes: "Como você existe? De onde vem a sua existência?". Eles têm somente duas opções (se você tentar adicionar uma terceira opção, descobrirá que é impossível, porque essa terceira opção sempre será reduzida a essas duas opções... e, é claro, se alguém disser que a terceira opção é "eu não existo", a resposta óbvia será "não há negação da existência de Deus devido à ausência de alguém a negando"... o que não faz sentido):

(1) Existo por mim mesmo.
(2) Existo porque algo ou alguém está dando existência a mim.

Se eles escolherem a primeira resposta, diga-lhes: "Então você é Deus, o Auto-existente", e isso é tudo, absoluto não dualismo. E, se escolherem a segunda resposta, diga-lhes: "Então, você está derivando a sua existência a partir de Deus", e isso é tudo, absoluto dualismo. Mesmo na presença de não dualismo ou dualismo, a existência de Deus não pode ser negada, exceto por teimosia desprovida de argumentos sólidos. Mesmo que eles digam que a sua existência provém deles mesmos ou de algo/alguém mais, isso é sempre Deus. Por "Deus", eu não quero dizer o Deus "religioso" semelhante a um humano, com uma longa barba e que está irritado agora e contente no próximo momento, etc. NÃO. Estou falando sobre o Núcleo de Tudo, a Fonte da Existência. Não há como negar a própria existência então, e quer alguém escolha si mesmo ou algo/alguém mais como fonte dessa existência, isso é sempre o Senhor Supremo. Isso é assim porque Ele é Ādisiddha ou plenamente provado desde o início. Como Ele projetou esse divino Jogo e permanece nele como o seu Núcleo, nenhuma das Suas criações pode negar a Sua constante presença. Sim, as pessoas podem dizer "qualquer coisa", mas outra coisa é "provar isso mediante uma sólida argumentação". Não há modo de apartar o Senhor Supremo mediante "nenhuma" argumentação, porque Ele é Ādisiddha. Tente isso, se você ainda não estiver convencido.

Existência de alguém que nega a Sua existência é sempre uma sólida prova da Sua existência. Para provar a Sua não existência, aqueles que negam a Sua existência também deveriam ser não existentes, o que anularia a negação imediatamente, pois eles não existiriam em primeiro lugar. Como resultado, todo o processo de negar o Senhor Supremo é bobeira, e os que negam existem nesse planeta "unicamente" porque as pessoas ao redor deles não sabem como raciocinar adequadamente e apresentar argumentos. Isso é ignorância sobre as escrituras, um dos aspectos da ignorância primordial (Āṇavamala). Outro aspecto é a falta de uma experiência direta do Senhor Supremo. Obviamente, ninguém pode ter uma experiência direta do Senhor Supremo se ele primeiramente nega a Sua existência "óbvia". Em suma, o processo de "negação da existência da Mais Alta Realidade" é bobagem. Agora, você sabe um pouco mais do que antes. E sim, mesmo todas as pessoas que fazem essa negação são outro Jogo do Senhor Supremo. Ele é tão inconcebível que joga para negar a si mesmo (não estou brincando). No final, esse Senhor Supremo também é o Ser do leitor, porque Ele experimenta todas as percepções que o leitor está tendo.Return

9  A Dualidade ou diferença (bheda) não pode se aplicar ao Senhor Supremo, porque Ele está em plena unidade com a Consciência. Essa declaração aparentemente difícil de compreender é muito simples no final. A Consciência é o estado no qual um ser consciente vive, isto é, o leitor (nunca estou falando de mais ninguém). A Consciência é sempre "uma Realidade" e não pode ser delimitada por nada de maneira alguma, pois está além do espaço e do tempo. Por exemplo, se o leitor disser: "Sou distinto daquela pessoa que está ali", isso é falso. Por quê? Porque essa declaração se baseia em formas (corpos físicos), localização no espaço, idade das formas, ideias, etc. Assim, o leitor estaria dizendo que outra pessoa é diferente dele porque o seu corpo não é como o corpo do leitor, ou porque a mente de outra pessoa não é como a mente do leitor, etc. etc. Mas o leitor estaria esquecendo algo que é vital: "Se percebeu todas essas diferenças entre ele e a outra pessoa, então tudo o que está sendo percebido (ou seja, que existe) é um com a Consciência". De quem é essa Consciência? Pertence àquele que está consciente, é claro: o leitor (novamente!).

Em suma, ele está "consciente" de todas essas diferenças, e, portanto, elas são uma com a Consciência (o estado onde o leitor vive todo dia e toda noite). E, se o leitor disser que todas essas diferenças são "distintas" da Consciência, então, como ele ficou consciente delas? Por quê? Porque essas diferenças não poderiam ter sido percebidas por ele de modo algum por serem inexistentes, ou seja, ele não teria ficado consciente de todas elas. Em suma, existe sempre "uma" Consciência que percebe todas as diferenças. Embora a dualidade exista para tudo o que está na esfera de espaço e tempo (objetos, corpos, mentes, etc.), como a Consciência está além de espaço e tempo, a dualidade nunca pode afetar a Consciência. A dualidade ou diferença nunca pode ser provada no caso da Consciência porque existe insuficiência de meios (anupapatti). Em outras palavras, o Senhor Supremo (VOCÊ, leitor), por ser um com a Consciência, é sempre Eka ou Um (Solitário), e nunca dois ou mais.

Outro exemplo simples: Olhe os objetos ao seu redor neste momento. Todos eles são diferentes entre si, não são? Todas essas diferenças aparecem em espaço e tempo, mas não na Consciência. A Consciência é o estado de um ser consciente, isto é, Você. Embora você veja distintos objetos no espaço e tempo e a dualidade prevaleça nesse nível, a Consciência é sempre a mesma, isto é, não está experimentando dualidade. Não há uma Consciência para este objeto e outra Consciência para outro objeto, e por aí vai. NÃO. É somente "uma" para todos eles. Se for levantada a objeção sobre uma Consciência por pessoa, a resposta é: "Existe apenas uma Consciência". De quem é? Sua! A Consciência de outros, se for delineada no pensamento, está sempre existindo na sua própria Consciência. Você vive na sua própria Consciência e não há outra maneira de viver para Você. Tente viver em outra Consciência e verá que isso é impossível. Se você entender esse ensinamento completamente, obterá libertação final em um piscar de olhos. A libertação final NÃO tem nada a ver com cantar mantra-s todo o tempo, adorar uma deidade dia e noite, chorar por Deus, etc. NÃO, tem a ver com receber a Graça do Senhor Supremo e ser muito inteligente, isto é, ter um intelecto que seja bom em raciocinar adequadamente de um ponto de vista espiritual. A Graça do Senhor Supremo está chovendo sobre você por meio das minhas notas explicativas, tenha certeza disso. O fator que resta é o desenvolvimento da sua inteligência. Se você puder desenvolvê-la ou se já a tiver, a libertação final está bem perto de você, porque "é muito óbvio que Você é o Senhor Supremo". Cantar mantra-s, adorar uma deidade e práticas similares são apenas para matar tempo, segundo a minha experiência. Por quê? Porque a Consciência é Auto-existente. Não é necessário praticar nada para dar-se conta Dela, realmente. É só a própria tolice que leva uma pessoa a pensar que a Consciência pode ser obtida por meio de prática. A Consciência não pode ser praticada, leitor, porque Ela é a sua natureza essencial. Não é necessário praticar ser o que já se é. É tolice fazer isso, de todos os pontos de vista. Imagine-se dizendo toda hora: "Eu sou eu, eu sou eu, eu sou eu". Tolice absoluta, certo? Pessoas praticando para ganhar uma percepção do Ser parecem o mesmo diante dos meus olhos: "Eu sou Consciência, Eu sou Consciência, Eu sou Consciência"... sim, eu já sabia disso... pare o seu papagaio interior, por favor... obrigado!

Esse tema "aparentemente" complexo, que é muito simples se você raciocinar adequadamente, é tratado extensivamente pelo sábio Kṣemarāja na sua Śivasūtravimarśinī I.1.Return

10  Embora o Senhor Supremo seja Um, entrou nas covas dos corações cujas formas são Rudra-s e kṣetrajña-s. Em outras palavras, tornou-se tanto seres libertados como seres limitados ao mesmo tempo. Os Rudra-s são os seres iluminados. Estão realmente livres de todas as limitações, bem como dos seus vestígios. Existe um termo em particular: "Pañcakṛtya" ou os cinco (pañca) atos (kṛtya) do Senhor. São os seguintes: Sṛṣṭi (manifestação), Sthiti (manutenção), Saṁhāra (retirada ou dissolução), Vilaya ou Pidhāna (um ato de esconder a natureza essencial) e Anugraha (outorga de Graça Divina que revela essa mesma natureza essencial). Diz-se que os Rudra-s estão a cargo dos primeiros três atos, ou seja, manifestação, manutenção e retirada do universo inteiro; enquanto os dois atos restantes são realizados pelo Próprio Śiva. Sim, admito, os Rudra-s também são Śiva, mas agora estou falando de uma maneira dual para mostrar a você as diferenças entre todos esses termos. E os kṣetrajña-s (lit. conhecedores do campo) são o resto de seres condicionados cuja limitação primordial não desaparece por completo. A limitação ou impureza primordial é o Āṇavamala. Quando alguém vira presa de Āṇavamala, experimenta que não é perfeito como Śiva. Não considera a si mesmo como Śiva. Está convencido de que é um indivíduo limitado. Esse é o ponto de partida para que um conjunto completo de limitações adicionais caia em cima desse ser miserável. Esse é o efeito da dualidade entre um indivíduo e o Senhor Supremo. No Mālinīvijayatantra, o mais venerável Tantra para o Trika, enumeram-se os nomes de 50 Rudra-s:

Amṛta, Amṛtapūrṇa, Amṛtābha, Amṛtadrava, Amṛtaugha, Amṛtormi, Amṛtasyandana, Amṛtāṅga, Amṛtavapu, Amṛtodgāra, Amṛtāsya, Amṛtatanu, Amṛtasecana, Amṛtamūrti, Amṛteśa, Sarvāmṛtadhara, Jaya, Vijaya, Jayanta, Aparājita, Sujaya, Jayarudra, Jayakīrti, Jayāvaha, Jayamūrti, Jayotsāha, Jayada, Jayavardhana, Bala, Atibala, Balabhadra, Balaprada, Balāvaha, Balavān, Baladātā, Baleśvara, Nandana, Sarvatobhadra, Bhadramūrti, Śivaprada, Sumanāḥ, Spṛhaṇa, Durga, Bhadrakāla, Manonuga, Kauśika, Kāla, Viśveśa, Suśiva e Kopa.Return

11  "Tudo isto que existe" (Sat) refere-se especificamente ao aspecto Sat da Criação, isto é, a todos os tattva-s do 6 até o 36 (aśuddhādhvā ou o curso impuro). Esse tema que versa sobre Sat é investigado pelo sábio Kṣemarāja "quase no final" da sua Parāprāveśikā, e, por mim mesmo através das notas explicativas 46 e 47 na mesma escritura.Return

12  Os mestres de Trika têm que explicar a manifestação do universo como um surgimento a partir do Senhor Supremo, o qual insinua dualidade. De qualquer forma, a verdade real é que nada nunca emerge, mas sim tudo é o Corpo do Senhor Supremo. Como esse último conceito é muito difícil de entender, propõe-se a analogia com um "surgimento". De qualquer forma, para remover qualquer possibilidade de dualidade, sempre se esclarece que aquilo que emerge (o universo) não é diferente da sua Fonte, como uma onda se formando no oceano. O universo, que consiste na "aparente" dualidade dos pares de sujeitos e respectivos objetos é representado como se consistisse de múltiplas formas ou a própria existência de algo diferente da Luz do Senhor não existiria. Em outras palavras, é só uma maneira dual de mostrar a manifestação e posterior manutenção do universo. É dual porque mantém-se que existe a "falsa aparência" de que algo é distinto Dele (da Sua Luz) está verdadeiramente existindo na forma de pares de sujeitos e objetos, quando a verdade real é que todas essas coisas estão constantemente em unidade com o Próprio Senhor Supremo, ou seja, existe somente um par de Sujeito e Objeto na forma de Śiva e o universo (o produto do śakticakra ou grupo de poderes emanado a partir de Śakti). É somente para o divino Jogo que todos eles são considerados como se tivessem emergido dessa maneira, e também é para explicar esse tema a estudantes, que tudo isso sobre a manifestação do universo é abordado como se fosse um "surgimento" a partir da Mais Alta Realidade. Na verdade, nenhuma dessas coisas está acontecendo desse modo, pois tudo o que se pode perceber como "universo" é o Seu Corpo. Esse é o modo real de abordar o tema previamente mencionado, mas apenas alguns poucos discípulos avançados entenderão isso plenamente.Return

13  Quando se faz a pergunta "Como é este (idam) universo?", a resposta é: Deve haver consciência ou reconhecimento (pratyavamarśa) desse mesmo pronome "Idam" (Este/Isto). O universo é um objeto, é "Isto", e não o Sujeito, que é "Aham" ou "Eu". Então, "Como é este universo?"... é tudo o que pode ser chamado de "Isto", por exemplo, corpo, mente, ego, objetos externos, etc. Aquele que não pode ser chamado de "Isto" como algo que se conhece ou percebe é o Próprio Percebedor, o Ser Imortal, isto é, Aham ou Eu (o Ser do leitor). O composto "sarva-nāma" provém de "sarvanāman", cujo significado é "pronome". Esse é o significado nesse contexto, e não "todos (sarva) os nomes (nāma)" como um tradutor de Sânscrito descuidado poderia interpretar.Return

14  O sábio Kṣemarāja explicou isso extensivamente no seu comentário sobre o primeiro aforismo dos Śivasūtra-s. Expliquei-lhe isso também por meio da nota 9 acima. Portanto, nunca se pode ser provado que exista algo mais que esteja separado do Senhor Supremo e que não seja manifestado devido à Sua Luz.Return

15  O sábio Abhinavagupta absorve-se no seu próprio Ser dotando de boas qualidades o seu ego artificial surgido a partir da identificação com o corpo, etc. O Ser é "Eu Sou", enquanto o ego é uma invenção do Seu Poder que aparece como: "eu sou João", "eu sou Maria", etc. O ego ou Ahaṅkāra (tattva ou categoria 15) é necessário tanto para a manifestação do mundo externo composto de Tanmātra-s e Mahābhūta-s (elementos sutis e brutos que abrangem os tattva-s 27 a 36, ver a Tabela de Tattva-s) quanto para a geração de Poderes de ação (Karmendriya-s, que abrangem os tattva-s 22 a 26). Esqueça a definição normal de "ego" como "arrogância" e coisas similares. Nesse contexto, ego é um tattva ou categoria na manifestação universal. O ego é obviamente o Próprio Ser, mas em escravidão (devido às três impurezas --mala-s--, Māyā e seus cinco Kañcuka-s ou Envoltórios), e com o Seu interesse voltado para o mundo objetivo. No entanto, esse ego é artificial (kṛtrima) ou inventado e NÃO a natural (akṛtrima) consciência do Eu (ahantā) ou "Eu Sou" que corre sem obstruções através de todos os estados e seus intervalos como se explica detalhadamente na nota 3 anterior. O ego existe somente durante os estados, e NÃO nos intervalos, onde somente "Eu Sou" (Śiva-Śakti, tattva-s 1 e 2) brilha. Dessa maneira, o ego é uma mera manifestação do Senhor Supremo (Você!) nascida da identificação do Ser (Eu Sou) com o corpo físico (śarīra), etc. (ādi). Como é esse Ser identificado com o corpo físico e o resto das coisas associadas como mente, sentidos, objetos externos, etc.? Por exemplo: "eu vivo aqui... e não ali". Isso significa: "o meu corpo físico vive aqui... e não ali". A errônea crença de que o Ser onipresente vive apenas em um lugar, e não em todos os lugares, é ego. Agora você pode ver claramente como funcionam as coisas na prática. Ou "Eu terei que viajar à Europa", quando o Ser nunca viaja, pois é imutável e ocupa todos os lugares. Outro exemplo de ego é: "tenho 48 anos", isto é, "meu corpo físico tem 48 anos", porque o Ser é sem nenhum começo, como indica o próprio Abhinavagupta na estrofe.

Essa invenção, esse "eu" artificial chamado ego é necessário para que o processo de manifestação universal ocorra corretamente dos tattva-s 15 a 36. Sem ego, não haveria nenhum mundo. Mas esse ego deve ter guṇa-s ou boas qualidades. Esteja avisado de que o comentarista não está utilizando o termo "guṇa" no sentido comum de "modalidade de Prakṛti (tattva 13)", mas em um sentido literal de "boa qualidade", "virtude" ou "mérito". Embora o conceito de "mérito" não exista "literalmente" em Trika, já que o Ser nunca parte da Sua natureza como o Percebedor cujo núcleo é a Luz do supremo não dualismo e a perpetuamente indivisível Liberdade, na etapa dualista onde o ego está estacionado, esse conceito pode ser usado para explicar aos discípulos por que uma pessoa pode dar-se conta do Ser enquanto outra pessoa não pode. A verdadeira explicação seria: "porque, em uma pessoa, o Ser quer ser percebido, enquanto em outra pessoa o Ser não quer ser percebido". De qualquer forma, essa última explicação confundirá muito a iniciantes e inclusive a aspirantes intermediários, porque vivem quase constantemente identificados com os seus corpos físicos, mentes, família, etc. De um ponto de vista prático, as boas qualidades também são necessárias, ou o aspirante não qualificará como discípulo. Se ele não qualificar como discípulo, não poderá ter um Guru, porque, mesmo se tiver um, não poderar aproveitar esse Guru ao máximo. É claro que, se o Ser decidir assim, mesmo o pior dos aspirantes pode se transformar no melhor dos discípulos instantaneamente, mas, na maioria das vezes, o caso é que os aspirantes terão que adquirir boas qualidades para qualificar como discípulos.

Quais são essas boas qualidades? Primeiro de tudo: O discípulo deve estar convencido de que o seu Guru é o Senhor Supremo aparecendo como uma pessoa dotada de um corpo físico, etc. Se considerar o Guru como alguém abaixo do Senhor Supremo, não alcançará libertação final. Isso é difícil de compreender, mas estou dizendo a verdade. Os discípulos que acreditam que o seu Guru não é uma personificação do Senhor Supremo não são realmente discípulos, mas sim meras pessoas ao redor do corpo físico desse Guru. Estão ali como animais ao redor de um ser humano. Imagine bichos de estimação ao mey redor enquanto escrevo todos esses ensinamentos espirituais no meu computador, e essa é uma boa representação de como parecem essas pessoas ao redor do seu Guru. Não têm a menor ideia de o que é o Guru, e nenhuma ideia sobre o que o Guru está fazendo. Devem dotar os seus egos (their as suas individualidades inventadas na forma de "eu sou João", "eu sou Maria", etc.) de boas qualidades, então. A principal boa qualidade é a firme convicção de que o Guru é o Próprio Senhor Supremo aparecendo nessa forma humana. Obviamente, estou falando sobre Guru-s genuínos, e não sobre meros palhaços que usam o apelativo "Guru". Portanto, é óbvio que deve haver um certo grau de entendimento do aspirante desde o início, ou ele não qualificará como discípulo. Para ser um discípulo, primeiro de tudo, deve estar convencido de que o Guru é o Senhor Supremo ensinando-lhe. Por exemplo, se ele recebeu um Mantra desse Guru, está convencido de que recebeu o Mantra do Próprio Senhor Supremo. Se o aspirante não tiver essa atitude, não é um discípulo, e, como resultado, o Mantra não trará frutos a ele de forma alguma. Não só o Mantra, mas nenhuma das práticas produzirá nenhum fruto se ele carecer dessa convicção da divindade do seu Guru. Permanecerá com tal Guru como um bicho de estimação com o seu dono, ou ainda pior, porque o animal de estimação geralmente obedece ao seu dono.

A partir da primeira boa qualidade chamada "convicção de que o próprio Guru é o Senhor Supremo em pessoa", deriva a segunda: obediência. Nenhuma obediência é possível se o aspirante pensar que o Guru é uma pessoa comum, ou inclusive se pensar que o Guru é um mero mortal como ele só que com mais conhecimento espiritual, e coisas assim. Então, um aspirante se transforma em um discípulo real quando tem a previamente mencionada convicção, a qual gerará quase automaticamente "obediência". O ego, especialmente no Ocidente, está sempre muito acostumado a conseguir as coisas do próprio jeito, pois as pessoas aparentemente sabem "o que é mais conveniente ou melhor". Um verdadeiro discípulo se deu conta, de um ponto de vista prático, de que não tem ideia sobre o que é mais conveniente ou melhor no seu caso, já que ele não sabe nada sobre o próprio futuro nesse desolador mundo. Dá-se conta de que vive à mercê de tudo o que está ao redor dele (outras pessoas, coisas externas que se movem, etc.) e dentro dele (pensamentos, raiva, frustração, etc.). Não tem ideia, então, do que é melhor para ele. Essa percepção gerará obediência imediatamente. Discípulos desobedientes nunca são discípulos verdadeiros, e, obviamente, não são tidos em grande estima por nenhum Guru genuíno. Só incomodam o seu Guru como mosquitos incomodando uma pessoa que vive na selva. Sempre têm uma opinião melhor, uma ideia melhor do que a do seu Guru, e, consequentemente, sempre erram o alvo, e nenhuma iluminação espiritual sobrevém a eles, pois a Deidade chamada "o seu Ser" simplesmente "não está contente" com eles.

A partir dessas duas boas qualidades que mencionei, outras boas qualidades serão desenvolvidas. Todas essas qualidades fazem com que um aspirante qualifique como discípulo. Se não for um discípulo real, não será capaz de receber a instrução do seu Guru adequadamente, e não ocorrerá nenhuma libertação final a ele. Não há como enganar nesse contexto, ou seja, ou alguém é um discípulo real, ou não é. Se não for um discípulo real, o processo de libertação final não ocorrerá corretamente e permanecerá em escravidão. Nesse caso, qual o objetivo de ter um Guru então? A pessoa conseguirá as coisas do seu próprio jeito a todo momento como o resto das pessoas comuns nesse planeta, mas nunca será Livre no verdadeiro sentido da palavra. Absolutamente tolo!Return

16  Quando Abhinavagupta estabelece que está tomando refúgio em Śambhu, o Senhor Supremo que vive nele como o próprio Ser, e descreve as Suas qualidades no processo, é feita uma alusão ao significado do livro inteiro. Em outras palavras, o objetivo final de escrever e ler esse livro chamado Paramārthasāra é a libertação final, também conhecida como iluminação espiritual, a qual se caracteriza por uma plena absorção em Śiva, o próprio Ser. Não há nenhuma outra razão pela qual o sábio comporia esse livro ou pela qual o leitor leria a sua obra na forma de 105 estrofes. Os respectivos meios a serem selecionados ou descartados para alcançar essa Meta serão indicados mais adiante à medida que os ensinamentos forem revelados pelo grande Mestre. Esse é o sentido.Return

Ao início


 Estrofes 2-3

Desse modo, tendo estabelecido, por meio de um louvor (introdutório), que o propósito do tratado é não dualista em sua natureza, agora, o autor do livro --Abhinavagupta--, enquanto conta (a história sobre) a inesperada aparição da escritura --Paramārthasāra--, disse, através de duas (estrofes escritas) em métrica Āryā1 , o sambandha --relação entre o título da escritura e o tema tratado nela--, o abhidheya --o tema da escritura--, etc.2 :


Desconcertado pela roda da dor que começa com morar no ventre (e) termina na morte (do corpo físico), um discípulo perguntou ao ilustre Ādhāra --também conhecido como Ādiśeṣa--3  sobre a Mais Alta Realidade --ou Meta Suprema--||2||

O Guru --Ādhāra-- lhe falou --a esse discípulo-- sobre a essência dessa (Mais Alta Realidade) --ou "daquele ensinamento que versa sobre a Mais Alta Realidade"-- por meio das Ādhārakārikā-s --Os aforismos de Ādhāra, que foram, ao final, denominados Paramārthasāra, a Essência da Mais Alta Realidade--. Abhinavagupta expressa (os mesmos aforismos, mas devidamente reformulados) segundo o ponto de vista da doutrina de Śiva||3||


Tendo pensado assim: "Devo receber instruções de um Guru ", alguém --um discípulo-- (que,) pelo Favor do Afortunado --o Senhor--, tinha desenvolvido vairāgya ou renúncia (e) tinha desistido da Transmigração --mover-se a partir de um pensamento até outro pensamento, a partir de um corpo até outro corpo, isto é, "miséria"--, depois de oferecer plenamente a sua adoração ao ilustre Sadguru --verdadeiro Guru ou Mestre-- Ādhāra, (também conhecido como) o sábio cujo nome é Śeṣa, perguntou(-lhe) sobre a essência do ensinamento relacionado à Mais Alta Realidade4 .

Então, entrando gradualmente em contato com o seu Ser ou natureza essencial (para assim medir) a maturidade da sua aptidão --da aptidão do discípulo--, (Ādhāra) considerou que esse discípulo estava dotado de um órgão psíquico interno --intelecto, ego e mente-- que se havia dissolvido --que estava limpo--. Esse mesmo Anantanātha --ou seja, Ādhāra ou Śeṣa--, que conhecia os ensinamentos de todas as escrituras, falou a esse discípulo sobre a obtenção do Supremo Brahma ou Absoluto dessa forma, (isto é,) por meio do conhecimento referente à discriminação entre Puruṣa (e) Prakṛti de acordo com as instruções declaradas pelo sistema Sāṅkhya, (e tudo isso) tomou a forma de um livro que foi posteriormente chamado "Ādhārakārikā-s" --Os aforismos de Ādhāra-- (ou simplesmente) designado como o Paramārthasāra --A Essência da Mais Alta Realidade--5 .

Depois de pensar assim para dar Graça a todas as pessoas por meio do sistema śaiva --pertinente a Śiva--, que versa sobre o supremo não dualismo: "(Se) esse mesmo ensinamento sobre Brahma fosse explicado do ponto de vista da Liberdade Absoluta do Ser cuja natureza é o supremo não dualismo, tornaria-se adequado", (Abhinavagupta adaptou a escritura de acordo). O Guru --Abhinavagupta-- (é Aquele que) é gupta (ou) escondido (e) segredista como --na forma de-- abhinava (ou) uma incomum vibração (relacionada ao) Deleite da Consciência6 .

Ele mesmo --Abhinavagupta--, (ou seja,) aquele cujo nome é formado por uma auspiciosa série de sílabas (e) que está ocupado em (conferir) a Mais Elevada Graça, explica tatsāra ou a essência --sāra-- desse --tat-- ensinamento que versa sobre a Mais Alta Realidade, a qual deve ser recebida como se fosse manteiga derivada de coalho7 .

Dessa maneira, o sambandha --relação entre o título e a escritura em si--, o abhidheya --tema--, o abhidhāna --título--, o prayojana --propósito da escritura--, etc. foram (indiretamente) apresentados (sem serem explicitamente declarados pelo autor do livro). No entanto, essas coisas não se explicam extensivamente aqui --no comentário-- por medo de fazer com que a escritura fique mais pesada no referente à argumentação8 .

De qual tipo (é) o discípulo? (Abhinavagupta) disse: "(há um) ato de morar no ventre".

(O discípulo está) desconcertado (e) movendo-se para lá e para cá em relação a essa roda (mencionada na estrofe), já que, devido à (constante) manifestação e desaparecimento, fica dotada de uma natureza transmigratória (e) parece uma (verdadeira) roda. (Tal roda,) cuja essência é dor que termina na morte (do corpo físico, é) aquela que está acompanhada por um aro na forma das seis mudanças aplicáveis a uma entidade positiva --alguém que existe, nesse caso, o próprio discípulo-- que aparecem como a variedade de múltiplos estados, começando com o seu --da entidade positiva-- ato de morar no ventre, (e seguido por) "(1) ele nasce, (2) ele existe, (3) ele cresce, (4) ele se desenvolve ou amadurece, (5) ele decai (e) (6) ele perece"9 .

Segundo esse (raciocínio), a presença de conhecimento relacionado a uma lembrança de um nascimento anterior, no seu caso --no caso do discípulo--, (teve que) se tornar manifesta, de outro modo, como poderia haver (nele esse) vivo interesse (expresso) como perguntas no que concerne a obtenção da Meta Mais Elevada?10 

Dessa forma, (o discípulo) que havia desenvolvido vairāgya ou renúncia, cujo coração havia sido penetrado pelo Poder outorgador de Graça do Senhor Supremo, no qual havia surgido conhecimento completo, tornou-se um receptáculo para o ensinamento ou instrução. (Depois disso,) após aproximar-se do adequado Guru, que é uma forma assumida pelo Senhor Supremo, ele deseja conhecimento sobre o Supremo Não Dualismo. Somente ele é o receptáculo ou recipiente para os ensinamentos do Guru11 .

Essa mesma (verdade) foi declarada em outros lugares (também):

"Oh deusa, pela força da descida de Poder, (uma pessoa) é conduzida em direção a um Guru genuíno."

E também:

"(Quando) se dá o Conhecimento Supremo, (então) a impressão residual das (próprias) ações é destruída."

Aqui (no livro, esse tema) será discutido mais adiante||3||

Pular as notas

1  O sábio Abhinavagupta usa, nessas duas estrofes, uma métrica conhecida como Āryā (lit. respeitável, nobre, etc.), uma métrica regulada pelo número de instantes silábicos, na qual a "a estrutura padrão" (porque existem nove tipos de métrica Āryā, não estou brincando) tem o primeiro e terceiro quartos com 12 mātrā-s cada, o segundo com 18 mātrā-s e o quarto com 15 mātrā-s. Sim, você está a ponto de ficar louco com Abhinavagupta e a sua linda métrica aqui, hehe. Agora, vou investigar qual variedade o sábio utilizou. Espero que tenha utilizado a padrão, dedos cruzados, ou terei que testar as outras variedades, o qual seria uma dor de cabeça, obviamente.

Segundo a prosódia sânscrita, uma estrofe ou padya consiste de quatro pāda-s --também denominados "pada-s"-- ou quartos. Tal estrofe pode ser vṛtta (com métrica regulada pelo número e a posição das sílabas --akṣara-- em cada pāda ou quarto) ou jāti (com a métrica regulada pelo número de instantes silábicos --mātrā-- em cada pāda ou quarto).

1) A classe vṛtta contém três subclasses: (1) samavṛtta (os quatro quartos de uma estrofe são similares), (2) ardhasamavṛtta (os quartos são similares de maneira alternada) e (3) viṣama (os quatro quartos são dissimilares).

A subclasse samavṛtta (todos os quartos são similares) é, de longe, a mais usada. Compõe-se de 26 variedades, de 1 sílaba por quarto até 26 sílabas por quarto. Por sua vez, cada variedade é dividida em subvariedades de acordo com a posição das sílabas curtas (lit. leves) e longas (lit. pesadas), etc. Muito bem!

As sílabas são curtas ou longas porque contêm vogais curtas ou longas. As vogais curtas são: a, i, u, ṛ, ḷ. As vogais longas são longas por duas razões: (1) São naturalmente longas (ā, ī, ū, ṝ, e, ai, o, au), (2) são prosodicamente longas por serem seguidas por Anusvāra ou Visarga, ou por duas ou mais consoantes (por exemplo, aṁ, aḥ, antr). A última sílaba de um quarto é "sempre" curta ou longa de acordo com os requisitos da métrica, ainda que seja curta ou naturalmente/prosodicamente longa, isto é, os autores estão livres para usar qualquer sílaba (curta ou longa) como a última em um quarto e isso "sempre" satisfará os requisitos da métrica. Lembre-se disso!

Por sua vez, para tornar as coisas mais simples (sem brincadeira), a prosódia sânscrita pega cada série específica de três sílabas em um quarto e lhe dá um certo nome. Esses grupos de três sílabas são conhecidos como "gaṇa-s" (não confundir com os conhecidos gaṇa-s ou casas utilizados para classificar verbos) e existem somente dessa maneira em estrofes que sejam vṛtta (com métrica regulada pelo número e posição das sílabas --akṣara-- em cada pāda ou quarto). Cada gaṇa é formado por três sílabas, mas deste modo em particular:

As três sílabas são longas, ou as três sílabas são curtas, ou há uma mistura (várias combinações de sílabas curtas e longas). Veja:

  1. ma: longa-longa-longa
  2. na: curta-curta-curta
  3. bha: longa-curta-curta
  4. ya: curta-longa-longa
  5. ja: curta-longa-curta
  6. ra: longa-curta-longa
  7. sa: curta-curta-longa
  8. ta: longa-longa-curta

Utiliza-se o nome "la" para designar uma sílaba curta, e o nome "ga" indica uma sílaba longa no final de um quarto. Bem, meu Deus, sim, isso foi difícil, mas se eu não tivesse explicado isso, você não entenderia o que vou dizer depois. Se você quiser um bom exemplo de métrica regulada pelo número e posição das sílabas, leia a última nota explicativa na minha tradução da Śivasūtravimarśinī.

2) De qualquer forma, apesar de toda a informação que apresentei acima como introdução, esqueça a classe "vṛtta" nesse caso, pois a métrica da estrofe em questão é da classe "jāti", ou regulada por instantes silábicos (mātrā-s)... ah sim, você vai adorar isso!

As estrofes 2 e 3 são assim:

Garbhādhivāsapūrvakamaraṇāntakaduḥkhacakravibhrāntaḥ|
Ādhāraṁ bhagavantaṁ śiṣyaḥ papraccha paramārtham||2||

Ādhārakārikābhistaṁ gururabhibhāṣate sma tatsāram|
Kathayatyabhinavaguptaḥ śivaśāsanadṛṣṭiyogena||3||

Os quartos 1 e 2, assim como os 3 e 4, foram unidos em apenas duas linhas de texto por estrofe, para economizar espaço e tornar tudo mais compacto. Averiguarei exatamente como determinar os quatro quartos por meio de um pouco de conhecimento sobre o processo referente a métricas reguladas por instantes silábicos (mātrā-s):

Esse conhecimento diz que a métrica Āryā, no seu modo padrão, consiste nos quartos 1 e 3 contendo 12 mātrā-s, o segundo 18 mātrā-s e o quarto 15 mātrā-s. Um mātrā é a largura de uma vogal "curta", e dois mātrā-s é a largura de uma vogal "longa" [naturalmente longa, p. ex.: "ā", ou prosodicamente longa, isto é, quando é seguida por duas ou mais consoantes, ou quando é seguida por Anusvāra (ṁ) ou Visarga (ḥ), p. ex.: int, iṁ, iḥ... tudo isso já foi explicado antes].

Sim, é complexo, mas vejamos isso em ação dividindo a estrofe em suas sílabas, as quais contêm as vogais curtas e longas que devem ser localizadas para, dessa forma, saber a quantidade de mātrā-s ou instantes silábicos. Adicionalmente, marcarei a largura das sílabas segundo a presença de uma vogal curta ou uma longa. Lembre que essa métrica é regulada por instantes silábicos (mātrā-s) e NÃO pelo número e posição das sílabas. Por isso, a quantidade e posição das sílabas variarão frequentemente ao longo dos quartos. No momento, estou tentando determinar qual tipo de métrica Āryā é essa traçando a exata localização dos quartos a partir de duas linhas longas de texto nas quais cada uma das estrofes foi agrupada para economizar espaço e tornar as estrofes mais compactas:

Estrofe 2
Ga rbhā dhi sa rva ka ma ra ṇā nta ka duḥ kha ca kra vi bhrā ntaḥ
longa longa curta longa curta longa curta curta curta curta longa curta curta longa curta longa curta longa longa longa
Ā dhā raṁ bha ga va ntaṁ śi ṣyaḥ pa pra ccha pa ra rtham        
longa longa longa curta curta longa longa longa longa longa longa curta curta curta longa curta        
Estrofe 3
Ā dhā ra ri bhi staṁ gu ru ra bhi bhā ṣa te sma ta tsā ram
longa longa curta longa curta longa longa longa curta curta curta curta longa curta longa curta longa longa curta
Ka tha ya tya bhi na va gu ptaḥ śi va śā sa na dṛ ṣṭi yo ge na
curta curta longa curta curta curta curta longa longa curta curta longa curta curta longa curta longa longa curta

Como eu lhe disse antes, não importa se o número e posição das sílabas não coincidir, porque isso tem a ver com instantes silábicos (mātrā-s). Como uma vogal curta equivale a 1 mātrā e uma vogal longa equivale a 2 mātrā-s, agora procedo a substituir "curta" e "longa" na tabela acima por "1" e "2", respectivamente. Além disso, a última sílaba de um quarto é "sempre" curta ou longa de acordo com os requisitos da métrica, ainda que seja curta ou naturalmente/prosodicamente longa, ou seja, os autores têm liberdade para usar qualquer sílaba (curta ou longa) como a última em um quarto e isso "sempre" satisfará os requisitos da métrica. Sempre leve isso em conta ou você se confundirá facilmente!:

Estrofe 2
Ga rbhā dhi sa rva ka ma ra ṇā nta ka duḥ kha ca kra vi bhrā ntaḥ  
2 2 1 2 1 2 1 1 1 1 2 1 1 2 1 2 1 2 2 2 = 30 mātrā-s
Ā dhā raṁ bha ga va ntaṁ śi ṣyaḥ pa pra ccha pa ra rtham  
2 2 2 1 1 2 2 2 2 2 2 1 1 1 2 1 = 26 mātrā-s
Estrofe 3
Ā dhā ra ri bhi staṁ gu ru ra bhi bhā ṣa te sma ta tsā ram  
2 2 1 2 1 2 2 2 1 1 1 1 2 1 2 1 2 2 1 = 29 mātrā-s
Ka tha ya tya bhi na va gu ptaḥ śi va śā sa na dṛ ṣṭi yo ge na  
1 1 2 1 1 1 1 2 2 1 1 2 1 1 2 1 2 2 1 = 26 mātrā-s

Agora, segundo a estrutura padrão da Āryā, o primeiro e terceiro quartos são de 12 mātrā-s de largura cada, enquanto o segundo é de 18 mātrā-s e o quarto mede 15 mātrā-s. Delimitarei os quartos com a ajuda de um pouco de cor e letras em negrito:

Estrofe 2
Ga rbhā dhi sa rva ka ma ra ṇā nta ka duḥ kha ca kra vi bhrā ntaḥ  
2 2 1 2 1 2 1 1 1 1 2 1 1 2 1 2 1 2 2 2 = 30 mātrā-s
1o quarto = 12 mātrā-s 2o quarto = 18 mātrā-s
Ā dhā raṁ bha ga va ntaṁ śi ṣyaḥ pa pra ccha pa ra rtham  
2 2 2 1 1 2 2 2 2 2 2 1 1 1 2 1
(tomado como 2 para satisfazer os requisitos da métrica)
= 27 mātrā-s
3o quarto = 12 mātrā-s 4o quarto = 14 mātrā-s (tomado como 15)
Estrofe 3
Ā dhā ra ri bhi staṁ gu ru ra bhi bhā ṣa te sma ta tsā ram  
2 2 1 2 1 2 2 2 1 1 1 1 2 1 2 1 2 2 1
(tomado como 2 para satisfazer os requisitos da métrica)
= 30 mātrā-s
1o quarto = 12 mātrā-s 2o quarto = 17 mātrā-s (tomado como 18)
Ka tha ya tya bhi na va gu ptaḥ śi va śā sa na dṛ ṣṭi yo ge na  
1 1 2 1 1 1 1 2 2 1 1 2 1 1 2 1 2 2 1
(tomado como 2 para satisfazer os requisitos da métrica)
= 27 mātrā-s
3o quarto = 12 mātrā-s 4o quarto = 14 mātrā-s (tomado como 15)

A última sílaba de um quarto pode ser tomada como curta ou longa para satisfazer os requisitos da métrica, como apontei anteriormente. Nesse caso, a última sílaba do 4o quarto (em ambas as estrofes) é considerado como se durasse 2 mātrā-s, embora realmente dure 1 mātrā, de modo que o número final de instantes silábicos seja igual a 15 como requer a métrica. O mesmo é verdadeiro com relação à última sílaba do 2o quarto da estrofe 3, de maneira que o número final de instantes silábicos é igual a 18. Agora que você traçou facilmente (estou brincando, é claro) os 4 quartos de cada uma dessas duas estrofes, pode escrever cada uma delas em quatro linhas em vez de duas. Veja:

Garbhādhivāsapūrvaka-
maraṇāntakaduḥkhacakravibhrāntaḥ|
Ādhāraṁ bhagavantaṁ
śiṣyaḥ papraccha paramārtham||2||

Ādhārakārikābhi-
staṁ gururabhibhāṣate sma tatsāram|
Kathayatyabhinavaguptaḥ
śivaśāsanadṛṣṭiyogena||3||

Oh, muito bem! Agora, os quatro quartos são claramente visíveis, certo? Mas por que diabos você iria querer passar por todo esse infernal processo de contar mātrā-s para ter cada estrofe escrita dessa maneira, em quatro linhas? Além disso, agora, as estrofes estão menos compactas e, assim, ocupam mais espaço!... Muito bom!, hahahaha! Resposta: p. ex.: Para uma correta recitação. "Ah, perfeito! Agora entendo!".

O resto da escritura está composto em métrica Āryā e, segundo o meu conhecimento atual, também contém variações da métrica chamdas: Gīti (o primeiro e terceiro quartos duram 12 mātrā-s, enquanto o segundo e quarto quartos duram 18 mātrā-s) e Upagīti (o primeiro e terceiro quartos duram 12 mātrā-s, enquanto o segundo e quarto quartos duram 15 mātrā-s). Ah sim, um novo pesadelo se eu continuar explicando isso a você, hehe.Return

2  Existe algo chamado "Anubandhacatuṣṭaya" ou "Um grupo de quatro Anubandha-s ou Pré-requisitos". Quando um autor começa a compor uma escritura, "geralmente" deveria indicar quatro coisas no início: (1) Viṣaya (também chamado Abhidheya) ou o tema, (2) Sambandha ou a relação entre o título da escritura e o tema nela tratado, (3) Adhikārin ou o tipo de leitor a quem a escritura é dirigida, e (4) Prayojana ou o propósito da escritura. O sábio Yogarāja posteriormente adicionará o abhidhāna ou título da escritura, etc.

Um autor normalmente deveria explicar todas essas coisas bem no início da obra, mas Abhinavagupta não explicou nenhuma dessas coisas "explicitamente". De qualquer forma, tudo isso é "implicitamente" expresso mediante as estrofes 2 e 3, segundo Yogarāja. O viṣaya ou tema é, obviamente, a Mais Alta Realidade e a Sua percepção. O sambandha ou relação entre o título da escritura e o seu tema está no fato de que esse tratado efetivamente versa sobre a essência da Mais Alta Realidade. O adhikārin ou pessoa que está qualificada para ler essa escritura é um discípulo que está desconcertado pela roda da dor que começa com morar no ventre e que termina na morte do corpo físico. Isso não é um romance para entreter alguém, ou um livro-texto para pessoas que querem saber como construir um foguete, e coisas assim. NÃO. É um meio que leva à libertação final da aflição sem fim chamada Saṁsāra (Transmigração) ou mover-se de um corpo a outro corpo, de um pensamento a outro pensamento, de uma coisa a outra coisa, etc. como se estivesse dentro de uma roda. E, finalmente, o prayojana ou propósito da escritura em si é dar ao leitor o que ele está buscando, isto é, iluminação espiritual com a correspondente cessação da escravidão. Agora, tudo está claro.Return

3  Ādhāra, Ādiśeṣa, Śeṣa, Anantanātha... todos esses quatro nomes se referem à mesma pessoa: um conhecido mestre vaiṣṇava (que segue Viṣṇu) que viveu em meados do século III ou IV d.C.Return

4  Um verdadeiro discípulo é alguém que cultivou renúncia. O que é isso? Segundo o sábio Patañjali: "Vairāgya ou Renúncia se conhece como o ato de subjugar o desejo com relação a objetos vistos ou acerca dos quais se ouviu repetidamente das escrituras." (Pātañjalayogasūtra-s I.15). Em outras palavras, um verdadeiro discípulo é alguém que abandonou todos os desejos com relação a objetos vistos ou acerca dos quais se ouviu repetidamente a partir das escrituras. Fez isso unicamente através da Graça do Senhor Supremo, e não devido a esforços pessoais. Ele não está mais nem um pouco interessado nos objetos, sejam eles mundanos ou sobrenaturais. Está interessado somente em livrar-se do Saṁsāra (Transmigração) ou essa roda da dor na qual todos os seres estão sofrendo ciclos de nascimentos junto com as consequências de tais ciclos na forma de constante aflição. No Kulārṇavatantra (um famoso Tantra), são especificadas as qualidades de um discípulo verdadeiro. Acredite em mim, se fosse necessário satisfazer esses requisitos atualmente, 99,9999999% dos discípulos atuais teriam que ser expulsos de todas as comunidades espirituais ao redor do mundo. Muitos deles não têm nenhuma convicção, como expliquei em uma nota anterior, de que o Guru é a personificação do Senhor Supremo. Tratam o Guru como se fosse uma pessoa espiritualmente avançada ou como alguém que sabe muito sobre escrituras, etc. Não têm a correta atitude para com o Guru e, dessa maneira, nunca podem conseguir libertação final, mesmo apesar de todos os esforços.

A partir da falta de convicção de que o Guru é o Senhor Supremo, a desobediência é o resultado natural. Se o Guru disser: "À direita", o discípulo irá "à esquerda", e, se o Guru disser "à esquerda", o discípulo irá "à direita". Isso é muito comum e não leva a lugar algum. Por que um discípulo faz essas coisas estúpidas? Porque os seus pensamentos estão baseados na noção errônea: "Sei o que é melhor para mim". Essa doença é extremamente comum neste mundo, especialmente no Ocidente, onde a individualidade se fortalece constantemente. Uma das qualidades do discípulo, como se especifica no Kulārṇavatantra, é a de que ele compreenderá o que o Guru diz imediatamente. Discípulos aos quais se devem dizer as mesmas coisas várias vezes são de baixa qualidade. Outra qualidade do discípulo é a tenacidade. O Kulārṇavatantra diz que um discípulo é capaz de conseguir o impossível. Por quê? Porque é tenaz. Pelo contrário, a maioria dos discípulos atuais é apenas infernalmente teimosa, sempre sabendo melhor que o seu Guru sobre o que deve fazer no momento seguinte. Por exemplo: Se o Guru lhes disser: "Mova-se nessa direção agora!", eles geralmente dirão: "Ah sim, mas não agora. Primeiro farei isso, e, depois de ter feito isso, moverei-me na direção que você me indicou". Esse tipo de raciocínio é muito comum entre os discípulos. É baseado em ignorância, obviamente, isto é, baseia-se na crença de que eles sabem "com certeza" o que vai acontecer com eles. Como é claro, nunca admitirão que eles atuam com base no que conhecem do futuro ou no que é melhor para eles segundo os seus limitados pontos de vista, mas, de qualquer maneira, atuam como se fossem seres oniscientes. Essa arrogância está enraizada em suas mentes, como uma forte impressão.

Toda essa tolice não levará a lugar algum, porque o Guru disse: "Mova-se nessa direção agora!", e não "Mova-se nessa direção depois de terminar de fazer tudo isso!". Não há democracia na relação Guru/discípulo, mas a maioria dos discípulos ignora isso, e, no final, o Guru simplesmente ficará farto do seu discípulo de baixa qualidade, e este acabará sendo descartado. De nada serve repetir as ordens de novo e de novo, porque isso é um desperdício de tempo e esforço. Além disso, às vezes, o Guru testará o discípulo de múltiplas formas para verificar as suas qualidades. Isso é feito para não desperdiçar tempo e esforço em discípulos inúteis. Nem todos os aspirantes estão plenamente qualificados para tornar-se discípulos verdadeiros de um Guru genuíno. Geralmente precisam de mais maturidade espiritual (paripāka).

A meta principal da vida não é os negócios, ter uma família, obter fama, prestígio, etc. Nada disso. O universo inteiro foi criado pelo Senhor Supremo unicamente para reconhecer a Si Mesmo através dele. Um discípulo deve compreender essa questão se quiser alcançar libertação final. Não estou dizendo que se deve abandonar o emprego, a família, etc. NÃO. Mas, em ordem de importância, a libertação final, também denominada dar-se conta do Ser ou reconhecimento da própria e verdadeira natureza, DEVE vir primeiro sempre. O Guru e os seus ensinamentos são serão adicionados à vida normal do discípulo como um aspecto secundário, mas, pelo contrário, é a vida normal do discípulo que será adicionada ao Guru e aos seus ensinamentos. O que é superior deve sempre vir em primeiro lugar, ou nenhuma libertação final ocorrerá ao discípulo. O verdadeiro discípulo compreendeu tudo isso, é claro, e está pronto para receber a instrução do Guru sobre a Mais Alta Realidade. Então, ninguém além de uma pessoa como ele está pronto para ser instruído por um Guru genuíno. Na vida comum, um ser limitado vive na convicção de que ele é o seu corpo e a sua mente. A libertação final significa livrar-se de toda essa falsa identificação com corpo e mente, o qual permite a uma pessoa desfrutar da sua natureza essencial, que é divina e consiste principalmente em Bem-aventurança e Liberdade. O que a maioria das pessoas chama de liberdade não é a verdadeira Liberdade. Como estão, em sua maior parte, identificadas com os corpos físicos, pensam que corpos movendo-se livremente é sinônimo de Liberdade real. E como também se identificam com as suas mentes, pensam que a liberdade para pensar isso e aquilo e expressá-lo "livremente", sem censura, é Liberdade real. Mas estão em escravidão de qualquer maneira, pois dependem constantemente de corpo e mente, e de tudo o que acontecer a essas duas coisas.

Por exemplo: Se uma mãe acabou de perder o filho de vista em uma multidão, não pode ficar imensamente Bem-aventurada enquanto o busca. NÃO, ela ficará, geralmente, desesperada, cheia de angústia e medo, e por aí vai. Esse é um exemplo de escravidão. Como a escravidão é comum, a grande maioria das pessoas pensa que ela é a "vida real", mas é simplesmente lixo no mais verdadeiro sentido da palavra. Uma pessoa libertada pode ser Bem-aventurada inclusive no meio de eventos horríveis. Não depende do corpo, da mente e de coisas externas relativas a essas duas para a sua felicidade. Outro exemplo é a usual questão de "esse problema é seguido por aquele problema". A maioria das pessoas está convencida de que, se solucionar esse problema, finalmente será feliz, mas logo notam que aparece um novo problema. Isso também é como uma roda da dor, um problema seguindo outro problema, com a pessoa tendo que resolver todos eles para ser feliz. Isso nunca levará à verdadeira Felicidade, porque é uma armadilha que o śakticakra (grupo de poderes) armou para o indivíduo limitado (Śiva aparecendo como puruṣa ou aṇu). Um discípulo real quer uma solução definitiva para todos os problemas, e não meramente continuar resolvendo problema atrás de problema como fazem as pessoas comuns. Essa solução definitiva equivale à libertação final ou um reconhecimento da própria e verdadeira natureza essencial. Essa é a Meta Suprema (parama-artha) da vida. O resto das metas não é supremo, mas sim meramente mundano e, consequentemente, temporal e secundário.

É sobre isso que o discípulo perguntou a Ādhāra, sobre Paramārtha, a Mais Alta Realidade ou Meta Suprema (ambas as traduções são possíveis aqui). Ele não perguntou ao Guru sobre como ser bem-sucedido nos negócios, ou sobre como ter uma família próspera, e coisas assim. NÃO. Ele perguntou sobre a Solução para todos os problemas. Essa atitude nele mostra que é um discípulo genuíno digno de ser instruído. A instrução aparecerá na forma do resto dessa escritura chamada Paramārthasāra (A Essência da Mais Alta Realidade ou Meta Suprema).Return

5  O Guru Ādhāra entrou em contato com o próprio Ser e esse ato lhe revelou o estado de maturidade e aptidão espirituais do discípulo que perguna sobre a Mais Alta Realidade. Ele pôde verificar que o seu intelecto, ego e mente foram dissolvidos, isto é, estavam limpos e prontos para conter a Mais Elevada Verdade. Acredita-se que Ādhāra tenha florescido no século III ou IV d.C., daí que a versão original do Paramārthasāra, também conhecida como as Ādhārakārikā-s, também date dessa época. A data foi determinada a partir de um comentário de Rāghavānanda sobre a escritura original. Como esse comentário data do século IV, as Ādhārakārikā-s devem ter sido escritas por volta do século III ou IV d.C. A obra original consiste de 85 estrofes e versa sobre instruções baseadas no sistema Sāṅkhya, ou seja, a libertação é obtida através da discriminação entre Puruṣa e Prakṛti. As estrofes são compostas, como eu disse antes, em métrica Āryā padrão, e também nas suas variantes chamadas Gīti e Upagīti. Ao longo dos séculos, essa escritura se tornou muito importante na região da Caxemira. Era tão importante que o próprio Abhinavagupta, no século XI, tomou a decisão de adaptá-la ao ponto de vista do Trika.Return

6  Como delineei no final da nota explicativa anterior, Abhinavagupta pegou a obra original de Ādhāra (também conhecido como Ādiśeṣa, Ṣeṣa e Anantanātha) e, embora tenha deixado algumas estrofes intactas, reformulou outras para adaptar os ensinamentos e adicionou vinte estrofes. A obra final se chama: o Paramārthasāra de Abhinavagupta, e está disponível juntamente com o Paramārthasāra original de Ādhāra. O Grande Mestre de Trika se deu conta de que essa bem conhecida escritura poderia ser facilmente adaptada ao ponto de vista do Trika (o qual é baseado em Svātantrya ou a Liberdade Absoluta do Ser) e servir ao propósito de transformar-se em todo um manual para que as pessoas aprendam Shaivismo Não Dual da Caxemira. Svātantrya ou a Liberdade Absoluta é outro nome de Śakti (o Poder do Ser). Por que Ela é chamada assim? Principalmente porque Śakti é capaz de transformar o Ser Supremo em um indivíduo limitado, e, ao mesmo tempo, Śakti é capaz de transformar um indivíduo limitado no Ser Supremo novamente. Como é impossível que qualquer outro poder além Dela realize essa duas tarefas, Ela é conhecida como Svātantrya ou Svātantryaśakti.

O nome "Abhinavagupta" significa literalmente "sempre novo (abhinava) e escondido (gupta)". Vários autores deram a sua explicação poética sobre as sílabas que formam o nome do Grande Guru de Trika. Yogarāja está dando, agora, a sua própria interpretação: "O Guru --Abhinavagupta-- (é Aquele que) é gupta (ou) escondido (e) segredista --na forma de-- abhinava (ou) uma incomum vibração (relacionada ao) Deleite da Consciência". A palavra "incomum" (lit. alaukika) implica que essa vibração não possui relação com este mundo ou loka. É divina em sua natureza e permanece escondida assim, na forma do misterioso Deleite da Consciência experimentado pelos grandes adeptos em Trika. Esse é o significado.Return

7  Assim como Ādhāra havia feito vários séculos antes, agora Abhinavagupta, no século XI, explica tatsāra ou a essência Disso (a Mais Alta Realidade) explicando a essência desse ensinamento que versa sobre a Mais Alta Realidade. Esse ensinamento é como se fosse manteiga extraída de coalho, simbolicamente falando, e deve ser recebido como tal. Em outras palavras, o Grande Guru processou a instrução original de Ādhāra que ensinava o sistema Sāṅkhya e transformou-a em uma instrução que segue o ponto de vista de Śiva.Return

8  Yogarāja expande a declaração sobre o Anubandhacatuṣṭaya ou os quatro pré-requisitos (ler nota 2 acima) que escreveu na sua introdução a essas duas estrofes. Também está estabelecendo que Abhinavagupta não deixou o Anubandhacatuṣṭaya "formalmente" claro no início da escritura, mas sim expressou-o "indiretamente" por meio dessas duas estrofes. Leia a nota 2 obter informação adicional sobre esse tópico. Yogarāja, de qualquer forma, não está disposto a explicar tudo isso extensivamente (como eu fiz) para que o seu comentário não fique muito pesado no referente à argumentação.Return

9  A roda da dor (Saṁsāra) roda constantemente através de manifestação e desaparecimento. Você pode ver isso por si mesmo a todo momento. O que era muito importante ontem, hoje não é de quase nenhuma importância. Por exemplo, muitas pessoas nem sequer lembram das datas de início e fim da Segunda Guerra Mundial, apesar de que milhões de pessoas ao redor do mundo ficaram ocupadas por seis anos matando umas às outras e experimentando/produzindo incontável sofrimento. Esse é um claro exemplo da roda da dor: Hoje algo é muito importante, mas amanhã quase ninguém se importa e é apenas um fato histórico. Se isso é verdade em relação a um conflito mundial, o que poderia ser dito sobre um conflito familiar? Somente poeira ao vento que não importará a ninguém no final. O Saṁsāra é assim, efêmero e constantemente mudando. Cansado dessa roda da dor, um verdadeiro discípulo é aquele que acordou para a verdade de que "não há realmente nada de valor no Saṁsāra", porque é tanto um Jogo do ponto de vista do divino Ser como uma tragédia do ponto de vista do indivíduo limitado. Então, ele quer ser livre dessa roda. Essa é a diferença entre um discípulo genuíno e o resto das pessoas comuns.

Essa roda da dor que captura todos os indivíduos limitados tem seis mudanças como aro, poeticamente falando. Isso é conhecido como o Ṣaḍbhāvavikāra ou as seis mudanças através das quais todas as entidades positivas (os seres vivos) passarão durante as suas vidas. O estado inicial é denominado "morar no ventre", é claro. A partir disso, seguem seis etapas: (1) Jāti ou janma (nascimento), (2) sattā (existência), (3) vṛddhi (crescimento), (4) vipariṇāma (maturidade ou desenvolvimento), (5) apakṣaya (declínio ou decadência) e (6) vināśa (morte ou destruição). Todos os indivíduos limitados (os que estão identificados com o corpo físico e a mente) atravessarão todas essas seis mudanças invariavelmente, já que não se deram conta do seu divino Ser, que é imutável. Esse divino Ser nunca nasce ou morre. Ele Existe eternamente e não apenas durante o lapso entre nascimento e morte. Nunca cresce ou se desenvolve. E também não há nenhuma decadência para Ele. Uma pessoa que se deu conta do Ser permanece no seu divino Ser e, como consequência, não está sujeita a esse miserável Ṣaḍbhāvavikāra. Então, o discípulo da história dessa escritura quer ser uma pessoa que se deu conta do Ser para, dessa forma, escapar de toda essa escravidão inventada por ele mesmo que devora os seres com as suas imensas mandíbulas.Return

10  Um verdadeiro discípulo deve, de alguma maneira, lembrar-se de um nascimento prévio para desenvolver um vivo interesse no que se refere à obtenção da Meta Mais Elevada. Isso é ficção científica? NÃO. Por exemplo: Eu me lembro da minha. Quando alguém morre, o próprio corpo é visto inteiramente preto. Depois de deixar o meu corpo anterior, vi que era completamente preto... não consigo explicar isso de uma maneira melhor. Depois disso, voei sobre um mundo azul... lembro-se do ar fresco no meu rosto enquanto voava sobre esse mundo divino. Finalmente, aterrissei neste corpo atual. Aquele mundo é Siddhaloka (o mundo dos seres aperfeiçoados -pessoas iluminadas-). Não me dei conta do significado de toda essa visão em meditação até que pude compreendê-la através dos meus estudos das escrituras. Não me foi permitido aterrissar naquele mundo azul porque ainda não era o meu tempo para fazer isso, pois precisava de mais um nascimento para alcançar a percepção do Ser. Ninguém que não seja uma pessoa que se deu conta do Ser, ou ao menos alguém que está a ponto de obter a Meta Mais Elevada, tem a permissão de entrar no Siddhaloka. Cada discípulo terá que se lembrar de um nascimento anterior, mais cedo ou mais tarde, e isso lhe revelará a razão do seu imenso interesse em dar-se conta do Ser. Portanto, a partir da minha experiência, aqueles que postulam que existe somente "uma" vida estão completamente errados do início ao fim. Isso também pode ser provado por meio de argumentos, através da presença de medo extremo da morte em um ser humano, o que denota que essa pessoa já morreu em uma vida passada... mas essa é uma longa história que não lhe contarei agora.Return

11  Somente um discípulo genuíno pode receber as instruções do Guru. Os aspirantes espirituais terão que qualificar como verdadeiros discípulos se quiserem avançar até a libertação final. Isso não é uma invenção minha, e sim uma instituição estabelecida pelo próprio Senhor Supremo. Quando um discípulo agrada ao seu Guru, está, na realidade, agradando ao Senhor Supremo. Tudo na espiritualidade tem a ver com agradar ao Senhor Supremo para que Ele conceda o Seu favor. As coisas aparentemente tem a ver com agradar a um ser humano chamado "Guru", mas essa falsa concepção é unicamente abrigada por pessoas que baseiam a sua visão da realidade naquilo que os seus sentidos estão lhes mostrando. A instituição Guru/discípulo foi estabelecida pelo Mais Elevado Ser para que o processo de iluminação espiritual proceda como deveria. Não só em Trika, mas em praticamente todas as tradições da Índia, a adoração ao Guru é primordial no caminho espiritual. O Guru, embora esteja dotado de um corpo humano, é sempre a encarnação do Senhor Supremo. Aspirantes que não têm essa convicção na divindade do seu Guru não conseguem dar-se conta do Ser. É simples assim! Mesmo se o Guru quiser conferir-lhes libertação final imediatamente, isso não acontecerá, porque esses aspirantes não qualificaram como discípulos genuínos em primeiro lugar.

Toda a questão entre Guru e discípulo não se relaciona, então, com agradar a outro ser humano, e sim com agradar ao Senhor Supremo. Qualquer séria falta de respeito por parte do discípulo com a instituição Guru/discípulo fundada pelo Senhor põe fim à relação Guru/discípulo, e, como resultado, não ocorre nenhuma libertação final. Sim, o discípulo pode ir a outro Guru, mas, se repetir o mal comportamento, não haverá libertação final a ele novamente. É muito simples! Muitos aspirantes odeiam tudo isso, porque são os orgulhosos portadores de um forte sentimento de individualidade. De qualquer forma, se não estão conseguindo libertação final dessa constante escravidão, de que serve ser um orgulhoso portador de um forte sentimento de individualidade? Tudo isso vai por água abaixo. Nenhuma libertação final é possível sem sacrifício. O sacrifício mais doloroso é sempre "sacrificar a noção de que se sabe melhor o que é mais conveniente para si mesmo". Sobre essa falsa ideia, a maioria das pessoas constrói as suas vidas... e não é nem um pouco surpreendente que não vão a lugar algum. A morte acaba com todo o seu orgulho e, no final, isso não importa a ninguém. Então, de que serviu todo esse alvoroço "orgulhoso"? Um discípulo genuíno não é assim, mas sim é "realmente inteligente".

Assim como um aspirante deve ser qualidades especiais para qualificar como discípulo verdadeiro, da mesma forma, um Guru também deve ter qualidades adequadas. Novamente, se os requisitos especificados no Kulārṇavatantra devem ser satisfeitos, então 99,9999999% dos guru-s que ensinam nesse mundo não qualificarão como verdadeiros Guru-s capazes de conferir libertação final, e todos eles teriam que ser expulsos de suas comunidades, tenha certeza disso. Por exemplo: um verdadeiro Guru deve conhecer todas as escrituras reveladas, deve ser capaz de dissipar engano e dúvida. Além disso, um Guru genuíno deve estar sem manchas e dotado dos poderes do Mantra. Deve ser misericordioso e desapegado de mulheres, riqueza, má companhia, etc. E ele não vende Mantra, Yantra e Tantra por dinheiro ou aprendizado... bem, com esse último requisito, pelo menos 90% dos atuais guru-s estão fora desde o início, haha. A lista de requisitos contina e continua, é claro. Depois disso, o Kulārṇavatantra estabelece firmemente que a adoração a um Guru como esse é adoração ao próprio Śiva. O Senhor Supremo, que é sem forma é onipresente, toma a forma de Guru para os discípulos possam alcançar liberação final, porque é muito difícil adorar o "Senhor sem forma", certamente. De qualquer maneira, um punhado de aspirantes espirituais pode atingir iluminação espiritual sem nenhum Guru humano, mas diretamente, através da Graça de Śiva. Mas, como esse tipo de pessoa é muito rara nesse mundo, a regra é que praticamente a grande maioria dos aspirantes tenha que qualificar como discípulos de um genuíno Guru humano, mais cedo ou mais tarde.

As pessoas que pensam que a adoração a um genuíno Guru é um mero culto à personalidade não podem se tornar verdadeiros discípulos até que desenvolvam a correta atitude. Maus karma-s ou impressões acumuladas nas suas mentes impedem que vejam a Divindade que aparece na forma de um Guru dotado de um corpo humano. São como cegos que não vêem o próprio sol em frente deles. Sim, existe uma interminável quantidade de Guru-s falsos por aí, mas a sua presença indica que também existem verdadeiros Guru-s, porque ninguém falsificaria dinheiro se também não existisse dinheiro verdadeiro disponível. A libertação final nunca é barata, mas sim existem muitos desafios; o desafio chamado "falso Guru" é apenas um deles. Em qualquer caso, a libertação final é sempre o problema de um discípulo, e NÃO o problema de um Guru. Se alguém quiser escapar dessa roda da dor chamada Saṁsāra, terá que realizar os esforços correspondentes, um dos quais é encontrar um Guru real. Certamente, existem poucas pessoas que conseguem alcançar libertação final sem a ajuda de nenhum Guru humano, mas raramente se encontra esse tipo de santo, devido às dificuldades extremas que uma pessoa tem que atravessar para se colocar em contato com o Senhor diretamente. O Senhor fala de maneiras que, na maioria das vezes, um mero mortal não consegue entender sem orientação adequada. Se alguém conseguir compreender diretamente o que o Senhor está dizendo, poderá evitar a questão do Guru humano, mas isso é extremamente incomum. Na maior parte do tempo, um indivíduo limitado não conseguirá entender as instruções dadas pelo Senhor Supremo sem a ajuda de um Guru.Return

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 Informação adicional

Gabriel Pradīpaka

Este documento foi concebido por Gabriel Pradīpaka, um dos dois fundadores deste site, e guru espiritual versado em idioma Sânscrito e filosofia Trika.

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